Uma artista paraense rebelde, em Paris

Esta coluna do escritor Oswaldo Coimbra está traduzida para o Inglês (no final, abaixo)

No Pará, já houve um grupo de artistas, espalhados por três gerações seguidas, que se uniram não pela adesão a uma mesma corrente estética, motivo habitual de aproximação entre membros desta categoria social.

Mas por algo inesperado e original dentro da História da Cultura de qualquer região do mundo.

Todos pertenciam a uma única família.

Foi neste grupo de artistas que nasceu Julieta de França, a primeira escultora da História das Artes do Brasil.

Filha de um casal de pianistas – Joaquim e Idalina de França -, Julieta teve um irmão compositor, Arthur de França.

E ele, por sua vez, foi casado com outra pianista, Alice de França.

Com ela, veio a ter uma filha violoncelista, Alice Dora de França.

Todos estes artistas viveram nas décadas finais do século XIX e no início dos anos de 1900.

Portanto, num período no qual as famílias brasileiras sonhavam em ver seus filhos encaminhados unicamente para a Advocacia, a Medicina e a Engenharia, áreas onde se concentravam as pessoas de prestígio social.

Sem se importarem com estas convenções, os França optaram livremente pelas Artes, respeitando somente suas inclinações naturais.

Foi, certamente, o respaldo dado por esta tradição de liberdade do seu ambiente familiar que permitiu à Julieta enfrentar outras convenções sociais de seu tempo, igualmente restritivas, aquelas impostas apenas às mulheres.

Julieta foi buscar uma profissão bem longe da de dona de casa, reservada para as mulheres de então, conquistando uma vaga de aluna na mais importante instituição do ensino de Escultura no Brasil, a Escola Nacional de Belas Artes, do Rio de Janeiro.

Talentosa, se tornou ali a primeira aluna a obter o direito de assistir às aulas de Escultura com modelos vivos.

Os quais, naturalmente, posavam quase sempre nus.

Em 1900, outro grande êxito dela: conquistou o mais valioso prêmio concedido a um discente, uma bolsa de estudos em Paris.

Na capital da França, Julieta matriculou-se na Academia Julian.

Exatamente a instituição onde estudavam jovens artistas que chocavam Paris com um comportamento público escandaloso.

Entre os quais se misturavam dois gênios, Henri Matisse e Paul Gaugin.

A atmosfera de irreverência que existia na escola parisiense de Julieta ficou estampada numa foto de F. Bianchi.

Nela, aparecem alunas e alunos com as roupas muitas pesadas impostas pela época.

Nos rostos deles, contudo, sorrisos marotos revelam uma travessura.

Para percebê-la, basta observar quem foi incluída na foto.

Uma das modelos das aulas de Escultura e Pintura.

Exatamente como ela ficava diante dos cavaletes dos alunos.

Isto é, completamente despida.

Em Paris, Julieta se destacou como escultora e obteve o respeito da crítica especializada em Artes.

Seu êxito, porém, despertou inveja no diretor de sua antiga escola no Rio de Janeiro, o escultor Rodolpho Bernardelli.

Quando ela quis vender uma obra para o Congresso brasileiro, Bernardelli estava na presidência da comissão criada pelos deputados para avaliá-la.

A obra dela foi rejeitada.

Julieta teve, então, uma reação inimaginável numa mulher da época: enfrentou a comissão colhendo mais de 50 manifestações de apoio a ela entre os artistas e os críticos mais relevantes da França, de Portugal, da Itália e do Brasil.

A ousadia valeu-lhe a exclusão dos salões de exposições nacionais.

Com isto, seu nome ficou fora dos livros de História das Artes do Brasil.

Aquela atitude de Julieta, contudo, não foi a sua mais ousada.

Recentemente, a correspondência íntima dela foi examinada por Ana Semioni, pesquisadora da USP.

Ela encontrou cartas que revelaram a existência de uma filha de Julieta, concebida na sua condição de jovem estudante, mãe solteira, ousadia suficiente para naquela época expô-la a uma espécie de maldição social.

Quem seria o pai daquela criança, a quem Julieta iria chamar de Pandorita, um diminutivo do nome da primeira mulher da mitologia grega?

Foi Pandora – feita à semelhança das deusas imortais – quem serviu de instrumento para um castigo divino imposto aos homens.

Através dela, eles conheceram as aflições causadas pelos sofrimentos.

Semioni não quis levar adiante uma pesquisa sobre a vida particular de Julieta.

Mas levantou uma hipótese: o pai de Pandorita poderia ser Francisco de Castro, o amante de Julieta, autor de outras cartas encontradas por ela.

E quem ele era?

No período no qual Julieta frequentou aulas da Escola Nacional de Belas Artes, viveu no Rio de Janeiro um poeta e orador baiano, membro da Academia Brasileira de Letras, chamado Francisco de Castro.

Ele exercia também as profissões de médico e professor.

Era o autor daquelas cartas?

Só uma pesquisa específica deste assunto poderia responder, incorporando ou descartando o poeta baiano na trajetória da filha de Julieta.

Em cuja reconstituição, aliás, outras informações, como estas, colhidas esparsamente, eventualmente poderão ser úteis.

Por exemplo, o nome Pandorita de França foi incluído na lista de alunos aprovados nos exames de admissão da Escola Nacional de Belas Artes publicada pelo Diário Oficial da União, no dia 28 de março de 1920.

Outro exemplo: em 1922, houve uma atriz brasileira que atuou no filme “A Princesa” produzido em Boston, nos Estados Unidos.

A mesma atriz, no ano seguinte, criou em Berlim, na Alemanha, uma companhia responsável pela produção da fita “A Filha do Milionário”, em que atuou também.

Nome da companhia cinematográfica: De França.

Nome da atriz: Pandorita de França.

Tratou-se, nos dois casos, da filha de Julieta?

Se a resposta a ser obtida por um pesquisador, no futuro, for sim, não surpreenderá.

Afinal, Pandorita, como sua mãe escultora, não era também membro daquela família de artistas paraenses?

*Oswaldo Coimbra é escritor e jornalista

TRADUÇÃO PARA O INGLÊS

A Rebellious Artist from Pará, in Paris

In Pará, Brazil, there once existed a group of artists, spanning three successive generations, who united not through allegiance to a particular aesthetic movement—a common reason for such bonds among members of this social category—but through something unexpected and original in the history of culture anywhere in the world: they all belonged to the same family.

This group of artists produced Julieta de França, the first sculptress in the history of Brazilian art.

Born to a pair of pianists—Joaquim and Idalina de França—Julieta had a composer brother, Arthur de França. He, in turn, married another pianist, Alice de França, and they had a daughter, Alice Dora de França, who became a cellist.

All these artists lived during the late 19th and early 20th centuries. This was a period when Brazilian families dreamed of seeing their children pursue careers in law, medicine, or engineering—fields that promised social prestige. However, the França family disregarded such conventions, choosing instead to follow the arts, respecting only their natural inclinations.

It was likely this family tradition of freedom that allowed Julieta to challenge other social conventions of her time, especially those restrictive to women. She sought a profession far removed from the domestic roles expected of women and earned a place as a student at Brazil’s premier institution for sculpture education—the National School of Fine Arts in Rio de Janeiro.

With undeniable talent, Julieta became the first female student to gain access to live model sculpture classes, where models often posed nude. In 1900, she achieved another milestone by winning the most prestigious prize available to students: a scholarship to study in Paris.

In the French capital, Julieta enrolled at the Académie Julian, a renowned institution attended by young artists who shocked Paris with their scandalous public behavior. Among them were two geniuses, Henri Matisse and Paul Gauguin. The irreverent atmosphere of Julieta’s Parisian school was captured in a photograph by F. Bianchi, showing students in heavy period clothing but with mischievous smiles, revealing a hidden joke—one of the models, entirely nude, was included in the picture.

In Paris, Julieta gained recognition as a sculptor and earned the respect of art critics. However, her success provoked jealousy from Rodolpho Bernardelli, the director of her former school in Rio de Janeiro. When Julieta attempted to sell a sculpture to the Brazilian Congress, Bernardelli, then chair of the evaluation committee, rejected her work.

Julieta responded with remarkable boldness for a woman of her time, collecting over 50 endorsements from prominent artists and critics from France, Portugal, Italy, and Brazil. Her defiance led to her exclusion from national art exhibitions, effectively erasing her name from Brazilian art history books.

Yet, Julieta’s greatest act of defiance was revealed recently when Ana Semioni, a researcher at USP, examined her private correspondence. Semioni discovered letters that unveiled the existence of a daughter, conceived during Julieta’s time as a young student and raised as a single mother—a bold move in an era when such a situation invited severe social condemnation.

Who was the father of this child, whom Julieta named Pandorita, a diminutive of Pandora, the first woman of Greek mythology? In mythology, Pandora, created in the likeness of immortal goddesses, was the instrument of divine punishment for men, bringing suffering into their lives.

Semioni chose not to delve further into Julieta’s personal life but proposed a hypothesis: the father might have been Francisco de Castro, Julieta’s lover and the author of other letters found during the research. Francisco de Castro, a poet, orator, physician, and professor from Bahia, was a member of the Brazilian Academy of Letters and lived in Rio de Janeiro during Julieta’s studies. Was he the father? Only specific research could confirm or refute this theory.

In reconstructing Julieta’s story, scattered details, such as the following, could be useful: Pandorita de França’s name appeared in the list of students admitted to the National School of Fine Arts, as published in the Diário Oficial da União on March 28, 1920. Another intriguing clue surfaced in 1922 when a Brazilian actress appeared in the Boston-produced film The Princess. The following year, the same actress founded a film company in Berlin, Germany, which produced The Millionaire’s Daughter, where she also starred. The company’s name? De França. The actress’s name? Pandorita de França.

Could this actress have been Julieta’s daughter? If future research confirms this, it would not be surprising. After all, Pandorita, like her sculptor mother, was part of that family of artists from Pará.

Oswaldo Coimbra is a writer and journalist.

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