A imagem feita com os recursos de que dispunham os fotógrafos, no início do século passado, está esmaecida.
Afinal, existe há 113 anos.
Parece, hoje, um quadro impressionista.
Suas figuras humanas estão transformadas em sombras de si mesmas, sem boa parte dos seus traços originais.
Mas, nela, ainda é possível distinguir um grupo de homens de meia idade.
Eles cercam um ancião de 69 anos de idade, àquela altura, adoentado, num dia do mês de agosto de 1912.
Trata-se de Antônio Lemos, até pouco tempos antes, um dos políticos mais poderosos do Pará.
Cuja força havia sido adquirida de duas formas.
Por meio de obras caras, valiosas e duráveis executadas em Belém, no cargo de intendente.
E no manejo hábil dos políticos do interior do Estado.
Sua carreira teve a uma particularidade.
Ele não podia se candidatar ao cargo de governador, por uma restrição feita a quem não nascesse no Pará, pela Constituição Estadual.
Mas ele tivera força política suficiente para determinar quem governaria o Pará.
Como quando sua escolha recaiu sobre Augusto Montenegro.
Não por acaso.
Lá estava Belém, a cidade administrada por ele, na condição de terceira cidade mais importante do Brasil.
Numa proeza proporcionada pela riqueza advinda do ciclo econômico da borracha.
Agora, naquela foto, Lemos é só mais uma figura esfumada.
Na foto, um detalhe revela as circunstâncias em que ela foi produzida.
A mão do militar fardado no braço de Lemos.
Que deixa claro:Lemos fora preso.
É um prisioneiro exibido diante da máquina fotográfica.
Não há alegria, nem descontração na foto.
Apenas uma expectativa tensa de que seja feita logo.
Ao lado direito de Lemos, Virgílio Mendonça, o dono da casa onde todos estão.
Virgílio acaba de ser empossado no cargo, antes detido por Lemos.
É um político da facção furiosamente inimiga de Lemos.
Como o governador do Pará, João Coelho e os membros do Centro de Resistência ao Lemismo, liderados por César Coutinho de Oliveira.
Virgílio sabe que Lemos, ali indefeso ao lado dele, dispõe de apoio de gente poderosa fora do Pará, como o do próprio presidente da República, Hermes da Fonseca.
Por isto, Virgílio está mais próximo do fotógrafo.
Controla de perto a produção daquela imagem, interessadíssimo nela.
Pois, precisa provar que Lemos esteve vivo, enquanto permaneceu debaixo do teto da casa dele.
Na verdade assassinar ou não Lemos àquela altura já não faria tanta diferença, para quem estava empenhado em arrancar, de vez, o antigo intendente das disputas pelo poder no Pará.
Momentos antes, o chalé de ferro onde Lemos morava tinha sido destruído por uma turba enfurecida na campanha de ódio alimentada pela facção de Virgílio.
A campanha contava com quatro jornais de Belém, sob a regência do combativo jornalista Paulo Maranhão.
Nela havia sido sustentado, mentirosamente, que Lemos tinha promovido um atentado contra a vida do ex-governador Lauro Sodré, líder do partido de Virgílio.
A turba ensandecida se dirigiu em seguida à sede do jornal de Lemos – Província do Pará – e botou fogo nela.
Lemos havia chegado à casa de Virgílio num triste cortejo através das ruas de Belém.
No qual, foi empurrado, cuspido e apalpado com desrespeito.
O próprio Virgílio iria reconhecer, vinte e seis anos depois, a existência da ameaça de morte a Lemos, naqueles episódios.
Foi quando ele teve de se defender da acusação de que aquela foto de 1912 nada mais fora do que uma manobra dele para despistar seu interesse na morte de Lemos.
Numa carta publicada pela Folha do Norte no dia 13 de março de 1938, Virgílio diz que Lemos foi fotografado “como o povo reclamava”.
Isto é, preso, aniquilado.
O que, ainda assim, não impediria Virgílio de usar a mesma imagem para ocultar outra sua intenção.
Recentemente mais um documento da época reforçou a suspeita sobre as intenções de Virgílio.
Quando o diário do cineasta catalão Ramon de Baño, naquele período, em atividade em Belém, foi finalmente traduzido.
Baño revela no diário que por ordem de Virgílio gravou imagens dele discursando em frente de sua casa, em defesa da segurança de Lemos.
Mas, acrescenta uma informação desconcertante: as imagens eram de uma mera encenação.
Foram gravadas um dia depois dos acontecimentos que levaram Lemos àquele endereço.
Virgílio dá a seguinte versão da chegada de Lemos à residência dele, em 1912, na sua carta de 1938:
“Às oito horas ouvi um surdo rumor que aumentava.
Fui à janela e deparei com um triste espetáculo.
À frente de uma grande multidão, vinha um grupo de homens que, fazendo um cordão de isolamento.
Amparavam o senhor Lemos contra as fúrias da multidão que ululava.
O senhor Lemos, chegando defronte de minha casa, levantou os braços, quis falar, mas não pôde.
Desci imediatamente, dei-lhe o meu braço e conduzi-o para a minha sala de visitas.
Seguiram-se duas ou três pessoas, entre elas, um engenheiro que, ainda na escada do terraço, gritou:
– Vamos matar esse bandido.
Virei-me para ele indignado e disse:
– Por que não o matou nos escombros da casa dele ou na rua? Não consentirei, nem concorreria para cometer esse ato de extrema covardia. Surpreende-me a sua atitude. O senhor é um alto funcionário federal, que tem a obrigação de respeitar o vencido e dar um bom exemplo.
Pediu desculpas e retirou-se, envergonhado”.
Nesta sua versão, assim, de fato, Virgílio se limita só a negar que quisesse o assassinato de Lemos, dentro da casa dele.
O propósito de Virgílio em exterminar fisicamente Lemos, no entanto, ficou clara numa confidência feita a Lauro Sodré, o líder do partido dele, exatamente o político contra quem Lemos teria armado um atentado, segundo a calúnia da campanha movida contra ele.
Sodré havia chegado à casa de Virgílio, depois das humilhações públicas infligidas a Lemos para, ele, sim, proteger o ex-intendente.
Lá ouviu em confidência de um correligionário que Virgílio pretendia promover a morte de Lemos.
Esta confidência Sodré compartilhou com seu filho, Emmanuel Sodré.
E Emmanuel, em entrevista a Carlos Rocque, para o livro “Depoimentos para a História Política do Pará” revelou-a ao jornalista.
*Oswaldo Coimbra é escritor e jornalista
(Ilustração: Lemos, preso, na casa de Virgílio Mendonça, em 1912)
Translation (tradução)
Lemos, imprisoned, humiliated, was to be murdered.
The image, created with the resources available to photographers at the beginning of the last century, is faded. After all, it has existed for 113 years. Today, it resembles an impressionist painting. Its human figures have been transformed into shadows of themselves, stripped of much of their original features.
Yet, it is still possible to make out a group of middle-aged men in the photo. They surround a 69-year-old elder, frail at that time, on a day in August 1912. This is Antônio Lemos, until recently one of the most powerful politicians in Pará. His power had been amassed in two ways: through costly, valuable, and lasting works carried out in Belém as an intendant, and through skillful management of the state’s interior politicians.
His career had a peculiarity. He could not run for governor due to a restriction in the State Constitution that barred those not born in Pará. But he had wielded enough political influence to determine who would govern the state, as when he chose Augusto Montenegro. Not by chance, Belém, the city he administered, was the third most important city in Brazil at the time, a feat made possible by the wealth from the rubber economic cycle.
Now, in that photo, Lemos is just another faded figure. One detail in the image reveals the circumstances under which it was produced: the hand of a uniformed soldier on Lemos’ arm, making it clear that Lemos had been arrested. He is a prisoner displayed before the camera. There is no joy or ease in the photo, only a tense anticipation for it to be over quickly.
To Lemos’ right stands Virgílio Mendonça, the owner of the house where they all are. Virgílio has just been appointed to the position previously held by Lemos. He is a politician from a faction fiercely opposed to Lemos, as are the governor of Pará, João Coelho, and the members of the Center of Resistance to Lemismo, led by César Coutinho de Oliveira.
Virgílio knows that Lemos, defenseless beside him, still has the support of powerful people outside Pará, such as the President of the Republic, Hermes da Fonseca. For this reason, Virgílio stands closer to the photographer, closely controlling the production of that image, deeply invested in it. He needs to prove that Lemos was alive while under his roof.
In truth, whether or not to murder Lemos at that point no longer made much difference to those determined to permanently remove the former intendant from Pará’s power struggles. Moments earlier, the iron chalet where Lemos lived had been destroyed by an enraged mob, fueled by the hate campaign orchestrated by Virgílio’s faction. This campaign was backed by four Belém newspapers, led by the combative journalist Paulo Maranhão. It falsely claimed that Lemos had orchestrated an assassination attempt against former governor Lauro Sodré, the leader of Virgílio’s party. The frenzied mob then marched to the headquarters of Lemos’ newspaper, Província do Pará, and set it on fire.
Lemos had arrived at Virgílio’s house in a somber procession through the streets of Belém, during which he was pushed, spat upon, and groped disrespectfully. Virgílio himself would acknowledge, twenty-six years later, the existence of a death threat against Lemos during those events. This came as he defended himself against accusations that the 1912 photo was nothing more than a maneuver to deflect suspicion of his interest in Lemos’ death.
In a letter published by Folha do Norte on March 13, 1938, Virgílio states that Lemos was photographed “as the people demanded”—that is, imprisoned, annihilated. Even so, this did not prevent Virgílio from using the same image to conceal another intention.
Recently, another document from the time reinforced suspicions about Virgílio’s intentions. The diary of Catalan filmmaker Ramon de Baño, who was active in Belém during that period, was finally translated. Baño reveals in his diary that, under Virgílio’s orders, he recorded footage of Virgílio speaking in front of his house, defending Lemos’ safety. But he adds a disconcerting detail: the footage was a mere staging, recorded a day after the events that brought Lemos to that address.
In his 1938 letter, Virgílio provides the following version of Lemos’ arrival at his residence in 1912: “At eight o’clock, I heard a muffled noise that grew louder. I went to the window and witnessed a sad spectacle. At the head of a large crowd was a group of men forming a cordon, shielding Mr. Lemos from the fury of the howling mob.
Mr. Lemos, arriving in front of my house, raised his arms, tried to speak, but could not. I immediately went down, offered him my arm, and led him to my living room. Two or three people followed, including an engineer who, still on the terrace stairs, shouted: ‘Let’s kill this bandit!’
I turned to him indignantly and said: ‘Why didn’t you kill him in the rubble of his house or on the street? I will neither allow nor contribute to such an act of extreme cowardice. Your attitude surprises me. You are a high-ranking federal official, obligated to respect the defeated and set a good example.’ He apologized and left, ashamed.”
In this version, Virgílio limits himself to denying any desire to have Lemos murdered inside his home. However, Virgílio’s intent to physically eliminate Lemos became clear in a confidence shared with Lauro Sodré, the leader of his party—the same politician Lemos was falsely accused of attempting to assassinate in the smear campaign against him. Sodré had arrived at Virgílio’s house after Lemos’ public humiliations, intending to protect the former intendant.
There, he heard from a party ally that Virgílio planned to orchestrate Lemos’ death. Sodré shared this confidence with his son, Emmanuel Sodré, who later revealed it to journalist Carlos Rocque in an interview for the book Depoimentos para a História Política do Pará.
Oswaldo Coimbra is a writer and journalist
(Illustration: Lemos, imprisoned, at Virgílio Mendonça’s house, 1912)
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