Estamos diante de um sintoma de uma sociedade adoecida, marcada por solidão, luto e pressões sociais amplificadas pelas redes.
No Brasil de 2025, um fenômeno inquietante ganha força nas redes sociais, nas ruas e até nos tribunais: a obsessão por bebês reborn, bonecas hiper-realistas que imitam bebês humanos com detalhes impressionantes. O que começou como uma prática de colecionismo ou terapia simbólica para lidar com perdas emocionais transformou-se, para muitos, em uma fixação que ultrapassa os limites da realidade.
Pessoas tratam esses bonecos como filhos, exigem atendimento médico no Sistema Único de Saúde (SUS), disputam guarda judicial e buscam benefícios sociais, como se fossem crianças de verdade. Esse comportamento, que ecoa tendências em outros países, levanta um alerta vermelho: estamos diante de um grave problema de saúde mental que exige atenção urgente.
Os bebês reborn, feitos de vinil ou silicone, são confeccionados artesanalmente para replicar características humanas, como textura da pele, peso e até cabelos implantados. Criados inicialmente como itens de coleção ou ferramentas terapêuticas, eles ganharam popularidade mundial, atraindo figuras públicas como Britney Spears, Xuxa Meneghel e Gracyanne Barbosa, que compartilharam suas experiências com os bonecos.
No Brasil, a febre explodiu nas redes sociais, com influenciadores simulando “partos” e rotinas maternas, como o caso de Sweet Carol, cujo vídeo viral de um “nascimento” de boneca dividiu opiniões.
Mas o que preocupa especialistas vai além da encenação para engajamento online. Casos extremos mostram pessoas levando bonecos a unidades de saúde, alegando que estão com “febre”, ou buscando regulamentar judicialmente a guarda de um reborn em separações.
Uma advogada relatou que uma cliente exigiu que o ex-companheiro arcasse com metade dos custos do boneco, tratando-o como um filho. Há até registros de tentativas de obter benefícios sociais, como filas preferenciais ou descontos destinados a pais de bebês reais. Esses episódios, que podem parecer anedóticos, revelam um problema mais profundo: a perda de contato com a realidade.
Adoecimento mental
Para psicólogos e psiquiatras, o apego excessivo a bebês reborn pode ser um sintoma de transtornos mentais, como depressão, ansiedade ou transtornos dissociativos. A psicóloga Laís Mutuberria, especialista em Neurociência do Comportamento, explica que, embora os bonecos possam ser úteis em contextos terapêuticos específicos – como no tratamento de luto perinatal ou em pacientes com Alzheimer –, seu uso desregulado pode cristalizar padrões patológicos.
“Em casos de traumas complexos, como abuso ou negligência, o apego a um reborn pode dificultar a reintegração ao mundo real, substituindo relações humanas por um vínculo artificial”, alerta.
A psicóloga Denise Milk, em entrevista à revista VEJA, destaca que a internet amplifica esse fenômeno, transformando a saúde mental em um espetáculo público. “A exposição constante nas redes sociais pode intensificar o sofrimento de quem já está fragilizado, especialmente quando o vínculo com o boneco é julgado ou ridicularizado”, diz.
Um estudo de 2024 revelou que 34% dos brasileiros se consideram “angustiados” pós-pandemia, com jovens abaixo de 35 anos sendo os mais afetados. Nesse contexto, os reborns surgem como uma tentativa de preencher vazios emocionais, mas, sem acompanhamento profissional, podem agravar o isolamento social e a dependência afetiva.
O psicanalista Christian Dunker, em seu blog no UOL, compara a febre dos reborns a outras formas de “mimetismo da realidade”, como o apego a inteligências artificiais. Ele argumenta que esses bonecos cruzam a fronteira entre o brincar e a negação da realidade, evocando a angústia de confundir o humano com o inanimado.
“É como se a pessoa vivesse uma experiência real, mas sem os riscos e frustrações das relações humanas”, explica. Esse escapismo, segundo especialistas, pode levar a quadros graves, como dissociação ou até ideação suicida, especialmente em indivíduos com histórico de perdas ou solidão extrema.
Impactos na saúde pública e na sociedade
A obsessão por bebês reborn não afeta apenas os indivíduos, mas também sobrecarrega sistemas públicos e gera tensões sociais. Em Minas Gerais, um caso emblemático motivou o deputado Cristiano Caporezzo (PL) a protocolar o PL 3.757/2025, que proíbe o atendimento de bonecos no SUS, prevendo multas de até dez vezes o valor do serviço prestado.
O parlamentar citou episódios em que pessoas exigiram atendimento de emergência para bonecos, atrasando o tratamento de pacientes reais. A Secretaria de Saúde de Belo Horizonte afirmou desconhecer registros oficiais, mas a proposta reflete a preocupação com o uso indevido de recursos públicos.
Além disso, a judicialização dos reborns, como disputas por guarda ou herança, consome tempo e recursos do Judiciário. O deputado federal Zacharias Calil (UB-GO) apresentou um projeto que pune quem usa bonecos para obter benefícios sociais, como filas preferenciais ou descontos, argumentando que isso prejudica quem realmente necessita. Esses casos, embora raros, expõem uma sociedade em crise, onde a fronteira entre realidade e fantasia se torna perigosamente difusa.
Na saúde mental, os impactos são ainda mais alarmantes. A pesquisa Global Health Service Monitor 2023 apontou que 52% dos brasileiros consideram a saúde mental o principal problema de bem-estar no país. O apego patológico a reborns pode agravar transtornos preexistentes, aumentar o risco de doenças cardiovasculares e diabetes devido ao estresse crônico, e levar a comportamentos de risco, como negligenciar relações reais ou abandonar responsabilidades.
A exposição pública desse vínculo, frequentemente ridicularizada nas redes, pode intensificar o sofrimento, criando um ciclo de vergonha e isolamento.
Rede pública e tratamentos recomendados
A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), instituída pelo SUS, é a principal estrutura para enfrentar esse desafio. Composta por Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), unidades de acolhimento e hospitais gerais, a RAPS busca oferecer cuidado integral, mas enfrenta sobrecarga e falta de profissionais qualificados, especialmente em áreas remotas.
No Rio de Janeiro, o deputado Rodrigo Amorim propôs o PL 5.357/2025, que cria um programa de saúde mental para “pais” de reborns, com equipes multidisciplinares de psicólogos, terapeutas e assistentes sociais. O objetivo é prevenir depressão, suicídio e dependência emocional, oferecendo acolhimento sem estigma.
Especialistas recomendam que o tratamento comece com uma avaliação psicológica para identificar a raiz do apego. “Se o vínculo com o reborn é uma resposta a um luto ou trauma, a psicoterapia cognitivo-comportamental (TCC) pode ajudar a elaborar a dor e reconstruir relações reais”, explica a psicóloga Larissa, citada pela Vida Simples.
Em casos de transtornos graves, como dissociação ou depressão severa, a terapia pode ser combinada com medicação psiquiátrica, sempre sob supervisão. A terapia familiar também é indicada para reintegrar o indivíduo ao convívio social, enquanto grupos de apoio podem reduzir o isolamento.
Para idosos com Alzheimer, os reborns podem ser usados em contextos clínicos controlados, reduzindo ansiedade e estimulando memórias afetivas. No entanto, especialistas alertam que o uso terapêutico deve ser mediado por profissionais e nunca substituir a psicoterapia ou o contato humano. “O boneco é um instrumento, não a cura”, reforça Mutuberria.
Um chamado à ação
A febre dos bebês reborn no Brasil é mais do que uma curiosidade cultural; é um sintoma de uma sociedade adoecida, marcada por solidão, luto e pressões sociais amplificadas pelas redes. Como escreveu Tati Bernardi na Folha, “o que leva uma pessoa em boas condições mentais a parir um monte de silicone?”.
A resposta está na fragilidade humana, mas também na falta de políticas públicas robustas para a saúde mental. O Brasil, que figura entre os países com pior saúde mental pós-pandemia, precisa investir em prevenção, ampliar a RAPS e combater o estigma associado aos transtornos mentais.
A sociedade deve acolher sem julgar, mas também exigir responsabilidade. Levar bonecos ao SUS ou tribunais não é apenas um “devaneio”, como disse o deputado Caporezzo, mas um grito de socorro. Cabe ao poder público, aos profissionais de saúde e à comunidade responder com empatia e ação. O limite entre fantasia e realidade não pode custar vidas.
Que os bebês reborn, quando usados, sejam ferramentas de cura, e não símbolos de um adoecimento coletivo que ignoramos a nosso próprio risco. Fontes: O Globo, O Tempo, Veja, Metrópoles, Vida e Ação, entre outras, e postagens em redes sociais
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