Como Ella Candeu conecta a cena eletrônica underground ao universo das grandes marcas sem perder sua essência

Ella Candeu é o tipo de artista que desafia rótulos. Nascida em São José do Rio Preto, interior de São Paulo, começou a sonhar com a música eletrônica aos 15 anos, inspirada por um set de Gui Boratto. Mas o caminho até os palcos foi tudo, menos óbvio: formada em Geografia pela UNESP, mestra pela USP, ela conciliou por anos a vida acadêmica com a paixão pela música — até que, durante um intercâmbio nos Estados Unidos, aprendeu a mixar sozinha e deu início a uma nova trajetória. 

Desde então, Ella se destaca por sua habilidade de navegar entre diferentes universos: do underground de clubes como D-EDGE, Surreal Park e Club Vibe a eventos luxuosos de marcas como Ferrari, Schutz e Natura

Com inteligência musical e sensibilidade artística, ela adapta seus sets sem perder a identidade, criando atmosferas envolventes onde quer que esteja. Em um mercado marcado por incertezas e desafios, Ella Candeu vem consolidando seu nome com autenticidade, estratégia e amor pela arte — como mostra nesta entrevista, concedida em meio à repercussão de seu recente set no Festival Duna e da série de B2Bs que vem movimentando seu canal no YouTube.

House Mag – Pra começar, conta um pouco da sua trajetória: o que te levou à música eletrônica e quais eram suas referências e sonhos no início?

Ella Candeu – Foi vendo Gui Boratto tocando “Azurra” em um evento na minha cidade, São José do Rio Preto, quando tinha 15 anos, que me despertou o sonho de ser DJ para poder tocar músicas que tocassem o coração das pessoas. Mas eu era muito nova e sinceramente não tinha muito acesso, vim de família muito simples, de classe trabalhadora, onde não existia a chance de ser artista, ainda mais no interior… 

Fui estudar, fiz geografia na UNESP, dei aula de Geografia e História em escolas desde os meus 19 anos, com 22 entrei no Mestrado na USP, me mudei para São Paulo, me tornei muito séria muito nova, mas sempre mantive o sonho guardado. 

Foi com 24 anos, quando estava no intercâmbio durante o mestrado nos Estados Unidos, que aprendi a tocar com o namorado de uma amiga. Ele me emprestou uma controladora super básica por 30 dias, e eu aprendi a tocar vendo vídeos do Jayboo no YouTube. Quando devolvi a controladora, já tinha minha primeira gig marcada em um kava bar em Asheville, Carolina do Norte. Depois disso, tive mais duas gigs em Nova Iorque, juntei o dinheiro, comprei minha primeira controladora usada e voltei pro Brasil. 

Sinceramente, meu sonho quando comecei era apenas tocar nos lugares onde meus amigos iam e criar uma vibe pra eles. Não sonhava grande, achava que ser artista era algo muito distante da minha realidade. Foi conseguindo tocar nos lugares que meus amigos iam — como Heavy House, Tokyo, Coffeshopp Club e Amata — e praticamente me tornando residente de todos eles que me questionei: “qual o próximo sonho?”. E foi assim, no processo de realizar cada sonho pequeno que aprendi a sonhar grande.

HM – De lá pra cá, o que mais te surpreendeu nesse caminho? Existe alguma conquista que, lá no começo, você nem imaginava ser possível?

Ella Candeu – De lá pra cá eu nunca parei, sempre segui meu coração, me dediquei muito e busquei evoluir, toquei em muitos lugares diferentes até encontrar onde seria o meu lugar. A virada de chave para mim foi em 2022 quando fui descoberta por grandes marcas e me tornei DJ embaixadora da Schutz, descobrindo um novo mercado onde me identificava e que poderia ganhar cachês bons. 

Na época eu já tocava em bares, clubes e festas renomadas de São Paulo, mas ainda não era possível sair do meu trabalho no corporativo e viver das gigs, pois boa parte dos clubes não consegue pagar muito bem os artistas locais, logo eu não conseguia ver um futuro na música se seguisse apenas no meio alternativo. 

Foi unindo eventos corporativos na minha agenda ao lado de gigs como D-EDGE, Surreal Park, Club Vibe e Universo Paralello que consegui ver o meu caminho para viver da minha arte. Esse equilíbrio entre eventos corporativos e alternativos é o que me permitiu sair do meu trabalho em 2023 para ser de fato totalmente artista, e essa é sem dúvida a maior conquista da minha vida: viver a vida que sonhei, podendo viajar, viver e comer bem, trabalhando com o que eu amo, criando uma vibe através dos meus sets e tocando o coração das pessoas através das minhas músicas. Provavelmente a menina Ella lá do interior nem acreditaria que fosse verdade se alguém contasse, mas com certeza, lá no fundo, Ella já sonhava. 

HM – Hoje você se apresenta tanto em eventos e clubes alternativos relevantes no país, quanto em festas de marcas grandes e sofisticadas, como Ferrari, Trussardi, Schutz e Natura. Como foi esse movimento na sua carreira — ele aconteceu naturalmente ou foi uma escolha estratégica?

Ella Candeu – No começo, em 2022, foi um movimento muito fluido das responsáveis pelo marketing das marcas me verem tocando, principalmente nos clubes de Pinheiros, buscar meu perfil no Insta e entrar em contato. Comecei tocando para Morena Rosa, Spezzato e Schutz, e desde então isso foi crescendo organicamente, principalmente por indicação, pois esse meio de moda e marketing é relativamente pequeno em São Paulo. Quanto mais você é vista fazendo um bom trabalho, mais as pessoas querem trabalhar com você. 

Nesse caminho, teve uma virada de chave do ano passado pra cá, onde comecei a trabalhar mais para o mercado de luxo até chegar na Ferrari. Essa mudança foi uma consequência de uma profissionalização minha como artista que se resume em postura, repertório, posicionamento e investimento na qualidade do meu material e criação de conteúdo original, como a série de B2Bs semanais que posto no YouTube. 

Mas mesmo assim ainda estou só no começo. Hoje eu sonho grande porque tenho confiança no meu trabalho e me vejo representando marcas globais, conforme também me vejo tocando em festas e festivais na medida em que minhas músicas cheguem no coração das pessoas. 

HM – Em termos musicais, como é adaptar seu set pra públicos tão diferentes? Existe algo do seu som que você sempre leva, independentemente do contexto?

Ella Candeu – Não vou negar que é desafiador, mas sim, hoje eu consigo manter a minha identidade com naturalidade, desde eventos de luxo, corporativos, até festivais super intimistas e alternativos. Acredito que consigo isso porque vivo e frequento muitos ambientes diferentes, faço isso sempre observando o que toca as pessoas e descubro uma forma de sempre conseguir trazer as minhas referências e criar uma vibe independente de qual seja o evento. 

Hoje eu consigo entregar um set desde baixo BPM, bem cantado, caminho entre vertentes do house melódico e groovado (como afro-house, tropical house e progressive house), passo por nu disco, pop com remix, indie dance e vários outros. Hoje em dia, um bom house também é clássico e todo mundo gosta. 

Eu acredito que um bom DJ consegue tocar tudo o que quiser desde que consiga contar uma história por trás, e por eu realmente pesquisar músicas toda semana, acompanhar o que DJs do mundo inteiro estão tocando e lançando, acredito que sempre consigo entregar uma vibe gostosa e coerente a cada gig. 

No fim das contas, aprendi que em todos os eventos as pessoas querem sentir uma sensação acolhedora ao ouvir uma música com um vocal conhecido (que eu amo trazer em um novo remix que talvez ninguém conheça), com músicas completamente novas que vão despertar o sentir algo novo. 

HM – E como você se sente nos ambientes mais alternativos e nos ambientes mais comerciais? O que eles oferecem de positivo para a sua carreira — além, é claro, de melhores condições financeiras?

Ella Candeu – Eu realmente me sinto bem nos dois! Amo poder entregar um set novo e mais conceitual em festivais — ali eu me sinto uma artista realmente, pois as pessoas estão ali para apreciar a música, a mixagem e a vibe que eu crio, em conjunto com a minha energia no palco. Mas também gosto das festas sociais, porque a galera quer se divertir e eu gosto de divertir as pessoas, e até mesmo em eventos de moda, seja criando trilhas para desfiles ou em lançamentos de coleções ou produtos das marcas, eu realmente amo estar presente no encontro de pessoas icônicas desse meio e entregar uma vibe legal para elas. 

Agora, os eventos mais comerciais são um meio para poder ser artista, ter um fluxo maior de eventos, trabalhar também durante a semana, me conectar com pessoas, marcas, conhecer outras artes e artistas, além de me desenvolver, trabalhar minha mixagem, praticar criar vibes diferentes. Realmente acredito que cada parte que vivo no meu trabalho é importante. 

Algo legal, independente do ambiente, é ser tratada bem, ter um equipamento funcionando bem, um soundsystem bom, um acolhimento, hospitalidade e respeito por parte dos contratantes. Em termos de carreira, como eu quero construir mais a minha para tocar em festivais, cada abertura que tenho para esses eventos é bem importante, me dedico para entregar sempre algo único e novo.

HM – Existe um certo tabu no meio underground sobre artistas que tocam em eventos patrocinados. Isso já te afetou de alguma forma? Como você lida com essas percepções?

Ella Candeu – Com certeza existe, mas eu sinceramente não dou muita atenção, apenas faço o meu trabalho, me desenvolvo como artista e sigo o caminho do meu coração, tocando onde sou convidada e fazendo músicas para tocar o coração das pessoas. Quero seguir tocando em eventos alternativos, menores e até fazer os meus próprios eventos, mas isso é uma construção longa. Não tenho pressa e nem ego para estar em certos palcos, mas me sobra vontade de amadurecer a minha arte.

HM – Recentemente você gravou um set muito especial no Festival Duna, no Réveillon do Maranhão, que repercutiu bastante. Como foi essa experiência — e por que ela foi tão marcante pra você?

Ella Candeu – Essa experiência foi incrível, pois foi a minha volta tocando em festivais como Ella Candeu e não como FOXSiS, duo que eu tinha. Lá eu pude entregar um set entre organic, progressive e afro house — estilos que amo muito e que conversaram com o cenário e a vibe do festival, então foi bem especial pra mim.

O Duna é um festival bem intimista em um paraíso, onde é valorizada a conexão com o outro e o bem-estar de todos, e esses são os festivais que mais amo, com uma filosofia forte acompanhada de uma boa curtição. No Brasil não chega a ter uma dúzia de festivais assim, é um mercado bem pequeno, então pra mim é uma grande felicidade e realização poder participar e colaborar para criar uma vibe em cada um deles! 

HM – Ao longo dessa caminhada, o que você aprendeu sobre o mercado da música eletrônica no Brasil? Quais são os desafios reais que os artistas enfrentam pra se manter ativos e remunerados?

Ella Candeu – Eu aprendi que é muito caro ser artista no Brasil e que você tem que querer muito e se dedicar muito para conseguir crescer estando aqui. Acho que o principal desafio é a desvalorização que todos nós passamos, na maioria dos casos é um cenário bem triste se você comparar os cachês com o tempo e custo que o artista tem para se profissionalizar até chegar ali, mas não acho que isso é algo exclusivo dos DJs ou da cena da música eletrônica. 

O Brasil é um país que produz muita arte, mas que não tem em sua cultura um histórico de valorização e reconhecimento. Geralmente é 1% dos artistas que detêm 90% da renda do nicho, então é óbvio que a maioria não consegue, e por isso muitos desistem ou mantêm uma carreira paralela. 

Percebo que os artistas que conseguem ter sucesso e se manterem bem-sucedidos são os que se dedicam para construir uma carreira internacional e com o tempo passam a ser mais valorizados no Brasil, ou os que empreendem, seja no ramo do entretenimento ou em outros meios. 

HM – Que conselhos você daria pra quem está começando agora, especialmente artistas que buscam uma identidade forte e autêntica num cenário tão competitivo?


Ella Candeu – Busque se conhecer e entender quem é você como pessoa e como artista, evoluir a sua arte, não ficar copiando, criar algo novo e seu mesmo. Eu acho que esse é o único caminho para não haver concorrência, pois quando você entende o seu diferencial e só você pode entregar algo, não tem como outra pessoa competir em ser você. Nesse caso, a espiritualidade é o que mais me ajuda, eu faço meditação e orações todos os dias, tenho momentos de ócio sozinha e com as pessoas que eu amo e isso sempre me traz novas ideias. Hoje eu sei quem eu sou, a pessoa que eu quero ser, e tudo que eu estou fazendo está alinhado com isso. 

Essa clareza traz paz e um sentimento de realização bem grande que hoje pra mim é muito importante, mais até do que onde eu vou tocar ou quanto eu vou receber. No geral, eu diria que você tem que sonhar grande e acreditar em si mais do que ninguém, estar disposto a trabalhar duro e ser grato por ser quem você é hoje. 

Lembre-se que só você sabe da sua jornada, trajetória e do seu corre. Faça tudo o que puder por você, e se puder, faça também pelos outros, mas nunca faça mal a ninguém. Saber que está no seu caminho e que o seu caminho é guiado pelo seu coração, é um sentimento incrível, e é nele que temos que nos basear todos os dias. O destino aonde vamos chegar é apenas uma consequência do quão bem fazemos todas essas coisas, mas o importante mesmo é o caminho. 

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