Ninguém contribuiu mais que o médico Dorvalino Braga para que o prédio do Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira estivesse hoje incorporado à História da Cultura do Pará.
Ao longo de 60 anos, Dorvalino contribuiu não só como diretor do hospital para que o prédio se inserisse definitivamente na História da Psiquiatria do Pará.
Contribuiu também, como simples cidadão, quando já havia deixado aquele cargo, para que a memória do prédio não se perdesse, após sua demolição, em 1983.
Dez anos antes de iniciar, em 1955, a primeira de suas três gestões como diretor do Hospital Psiquiátrico, o prédio já fazia parte das inquietações de Dorvalino por causa de um detalhe arquitetônico: as grades de suas janelas.
Ele, então, nem era ainda psiquiatra.
Como aluno de Medicina, se sentia incomodado com aquelas grades, num prenúncio de sua atuação após se tornar médico.
Confessou Dorvalino, num depoimento dado, em 2011, ao Grupo de Memória da Engenharia, da UFPA:
– “Quando eu passava em frente ao prédio do Juliano Moreira, me chocava o espetáculo deprimente dos doentes pendurados, como bichos, nas grades do hospital.
Poucos anos depois de sua formatura, empossado na direção do hospital, ele iniciou logo um programa de mudanças no hospital que, porém, não pôde ter continuidade.
Por “razões políticas”, o programa foi interrompido, como ele explica num relato escrito para o livro “História, Loucura e Memória – O acervo do Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira”, editado pela Secult, em 2009.
Depois disto, o abandono a que o prédio foi relegado quase antecipou a destruição dele.
Registrou Dorvalino naquele relato:
– Segui-se um período de declínio com sucessivas mudanças de direção determinadas por injunções políticas, desacertos administrativos de consequências calamitosas para os doentes que, em 1962, revoltados, tentaram incediar o hospital.
Ele próprio, no entanto, fez um rota, naquele período, em sentido contrário ao imposto ao prédio do hospital.
Beneficiado com uma bolsa de estudos no centro psiquiátrico mais importante do país, naquele momento, o Hospital Dom Pedro II, no Rio de Janeiro, Dorvalino tratou de melhorar o quanto possível sua capacitação profissional.
Naquelaz fase,uma carga de preconceitos sociais contra doentes mentais afastava deles enfermeiros, técnicos, os profissionais da Medicina.
Sim, afastava, inclusive, os próprios médicos, a quem a área de Psiquiatria não despertava interesse.
O Dom Pedro II era dirigido por Odilon Galotti, um psiquiatra respeitado internacionalmente.
Foi ele quem traduziu para o português as obras completas de Freud, publicadas em 10 volumes pela Editora Delta.
Hoje, é nome de rua em Florianópolis.
Dorvalino teve a sorte de contar durante seu estágio com professores estrangeiros – sobretudo argentinos – e, com uma excepcional professora brasileira, Nise da Silveira, a médica perseguida pela ditadura militar imposta ao Brasil pelo Estado Novo, comandado por Getúlio Vargas, depois de 1937.
Companheira de prisão de Graciliano Ramos, ela se tornou personagem do livro dele, “Memórias do Cárcere”.
Nise era uma militante do combate às formas de tratamento psiquiátricos agressivos utilizados na época com emprego de confinamento dos pacientes e das terríveis lobotomias que os tornava meros espectros humanos.
Com o apoio destes professores, Dorvalino aprofundou mais sua repulsa pelas grades do Juliano Moreira.
Disse ele, em seu depoimento ao grupo da UFPa:
– Durante aquele ano no Rio de Janeiro, vivi exclusivamente para estudar.
Quando retornou ao Pará, ocorreu o Golpe Militar de 1964.
E, num episódio típico da época, Dorvalino foi nomeado pela segunda vez diretor do Juliano Moreira pelo líder dos golpistas no Pará, Jarbas Passarinho, sem sequer ser consultado.
Com bom humor Dorvalino contou durante seu depoimento que a portaria da nomeação lhe foi entregue em sua residência, de surpresa, pelo diretor da Divisão de Saúde Federal, no Pará, Eleison Cardoso.
Aquele momento, se tornou inesquecivel para ele, por sua total inconveniência.
Dorvalino se encontrava acamado, tentando resistir às dores da mordida de arraia em praia do nosso Estado.
Quando pôde conversar com o Jarbas Passarinho, já ocupando o cargo de Aurélio do Carmo, o governador eleito, mas deposto pelos militares golpistas, Dorvalino logo mencionou sua intenção de retirar as grades do Juliano Moreira.
Jarbas pediu que ele fizesse isto aos poucos, para não despertar reação entre os políticos e a imprensa.
Uma recomendação de prudência que Dorvalino simplesmente ignorou.
Ele diria, em seu depoimento:
– Entrei como um tufão na direção do hospital. Logo no dia seguinte ao da minha posse mandei tirar todas as grades do hospital.
Aquela alteração no Juliano Moreira, pequena, do ponto de vista arquitetônico, passava a ganhar a dimensão histórica que tornaria mais dramática a perda de seu prédio em 1983.
A retirada delas serviu não só para documentar a mudança de fases da História da Psiquiatria do Pará, com a extinção do confinamento dos pacientes.
Serviu também para lembrar que a liberdade de circulação destes pacientes foi garantida por Dorvalino, num momento de crise da democracia brasileira quando por detrás de grades de outras prisões foram confinados paraenses como Ruy Barata, Benedito Monteiro e Ramundo Jinkings.
Translation (tradução)
The Doctor Who Removed the Bars from the Hospital
No one contributed more than Dr. Dorvalino Braga to ensuring that the Juliano Moreira Psychiatric Hospital building is now part of Pará’s cultural history. Over 60 years, Dorvalino not only played a key role as the hospital’s director in cementing the building’s place in the history of psychiatry in Pará but also, as an ordinary citizen after leaving the position, worked to preserve its memory following the building’s demolition in 1983.
Ten years before starting his first of three terms as director of the Psychiatric Hospital in 1955, the building already preoccupied Dorvalino due to an architectural detail: the bars on its windows. At the time, he was not yet a psychiatrist. As a medical student, he felt disturbed by those bars, a foreshadowing of his later actions as a doctor.
In a 2011 testimony to the UFPA Engineering Memory Group, Dorvalino confessed: “When I passed by the Juliano Moreira building, I was shocked by the depressing sight of patients hanging onto the bars, like animals.”
A few years after graduating, as the hospital’s director, he promptly initiated a reform program, which, however, was halted for “political reasons,” as he explained in a written account for the book History, Madness, and Memory – The Collection of the Juliano Moreira Psychiatric Hospital, published by Secult in 2009. Following this, the building fell into neglect, nearly hastening its destruction.
Dorvalino recorded in that account: “A period of decline followed, with successive changes in leadership driven by political interference and administrative missteps that had disastrous consequences for the patients, who, in 1962, revolted and attempted to set the hospital on fire.”
Meanwhile, Dorvalino took a different path from the hospital’s decline. Awarded a scholarship to study at Brazil’s most prestigious psychiatric center at the time, the Dom Pedro II Hospital in Rio de Janeiro, he seized the opportunity to enhance his professional skills. At that time, social prejudices against mental health patients deterred nurses, technicians, and even doctors, for whom psychiatry held little appeal.
The Dom Pedro II Hospital was led by Odilon Galotti, an internationally respected psychiatrist who translated Freud’s complete works into Portuguese, published in 10 volumes by Editora Delta. Today, a street in Florianópolis bears his name. During his training, Dorvalino was fortunate to learn from foreign professors—mostly Argentines—and an exceptional Brazilian professor, Nise da Silveira, a doctor persecuted by the military dictatorship imposed by Getúlio Vargas’ Estado Novo after 1937. A fellow prisoner of writer Graciliano Ramos, she became a character in his book Prison Memories. Nise was a fierce advocate against the aggressive psychiatric treatments of the era, such as patient confinement and lobotomies, which reduced patients to mere shadows of themselves.
With the support of these professors, Dorvalino deepened his aversion to the bars at Juliano Moreira. He stated in his UFPA testimony: “During that year in Rio de Janeiro, I lived solely to study.”
Upon returning to Pará, the 1964 Military Coup occurred. In a typical episode of the time, Dorvalino was appointed director of Juliano Moreira for the second time by Jarbas Passarinho, the coup leader in Pará, without even being consulted. With humor, Dorvalino recounted in his testimony that the appointment notice was unexpectedly delivered to his home by Eleison Cardoso, the director of the Federal Health Division in Pará.
The moment was particularly inconvenient, as Dorvalino was bedridden, recovering from the pain of a stingray bite sustained at a beach in the state.
When he finally spoke with Jarbas Passarinho, who had replaced the elected but deposed governor Aurélio do Carmo, Dorvalino immediately expressed his intention to remove the bars from Juliano Moreira. Jarbas advised him to do so gradually to avoid backlash from politicians and the press—a recommendation Dorvalino outright ignored.
He later said in his testimony: “I stormed into the hospital’s leadership. The day after taking office, I ordered all the bars removed.”
This small architectural change at Juliano Moreira took on historical significance, making the building’s loss in 1983 even more poignant. The removal of the bars not only marked a shift in the history of psychiatry in Pará by ending patient confinement but also served as a reminder that Dorvalino ensured patients’ freedom of movement during a crisis in Brazilian democracy, when other bars confined Pará natives like Ruy Barata, Benedito Monteiro, and Ramundo Jinkings in prisons.
*Oswaldo Coimbra is a writer and journalist.
(Illustration: The bars of the Belém psychiatric hospital)
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