Duelo dos pescoços: besouro-girafa e os mistérios de uma espécie única


Endêmico das florestas úmidas de Madagascar, o inseto chama atenção pelo pescoço alongado usado tanto em disputas por território quanto na proteção de seus ovos. Espécie é endêmica das florestas tropicais de Madagascar
昆虫学liuye/iNaturalist
Imagine um besouro com o pescoço tão longo que representa quase metade do seu corpo. Para o besouro-girafa (Trachelophorus giraffa), também chamado de gorgulho-girafa, essa característica não é apenas uma parte da evolução – é sua maior arma e ferramenta de sobrevivência.
Essa espécie é endêmica das florestas tropicais de Madagascar, país da costa sudeste da África. Com hábitos herbívoros, passa quase toda a vida em uma árvore conhecida como “árvore do besouro-girafa” (Dichaetanthera arborea, mas também Dichaetanthera cordifolia, ambas pertencentes à família Melastomataceae), alimentando-se das folhas.
Besouro-girafa se alimentando da “árvore do besouro-girafa”
Bertrand Bouchard/iNaturalist
Apesar de sua aparência exótica, pouco se sabe sobre sua população na natureza. Atualmente, a espécie é classificada como “Quase Ameaçada” (NT) pela IUCN (União Internacional para a Conservação da Natureza, na sigla em inglês), o que significa que, embora ainda não esteja em perigo imediato de extinção, pode enfrentar sérios desafios no futuro caso seu habitat continue a ser degradado.
‘A batalha dos pescoços’
O traço mais marcante do besouro-girafa é, sem dúvidas, o pescoço extremamente alongado dos machos, motivo também pelo qual ele recebe esse nome popular. Esses pescoços representam quase metade do seu comprimento total. Em geral, os machos medem de 15 a 25 mm e as fêmeas medem de 12 a 15 mm. Os machos de besouro-girafa podem ter o pescoço cerca de duas a três vez maior em relação às fêmeas. Mas para que serve essa estrutura?
“O alongamento desta parte do corpo nos machos é resultado do processo de seleção sexual. Seu valor ou função adaptativa está relacionada à eficácia dessa estrutura durante o combate com outros machos na ‘conquista’ da fêmea”, diz Aline Lira, pesquisadora de pós-doutorado no Laboratório de Taxonomia de Insetos (LabTaxIn) e especialista em Curculionidae.
Segundo ela, dois machos ficam frente a frente e balançam seus pescoços alongados para cima e para baixo até que um cede e recua, além de haver lutas físicas utilizando o pescoço. Esta exibição e combate garantem a cópula e consequentemente a perpetuação da espécie através da reprodução.
Á esquerda, uma fêmea de besouro-girafa e à direita, um macho da espécie
Maël Dewynter/iNaturalist
Os machos também costumam balançar o pescoço para frente e para trás ao redor da fêmea durante a oviposição – processo de liberação de ovos pelo corpo de uma fêmea, possivelmente para impedir que outros machos se aproximem.
Mas a função do pescoço não se limita apenas às disputas territoriais. As fêmeas, embora possuam pescoços significativamente menores, utilizam essa estrutura para a construção dos ninhos.
“Este é um comportamento bastante interessante e comum também em outros besouros da família Attelabidae. As fêmeas cortam a folha de maneira bastante específica, enrolando-a e depositando um único ovo dentro do tubo formado, e depois cortando-o para cair no chão da floresta. A folha fornecerá alimento à larva durante seus primeiros dias de vida”, explica a pesquisadora.
Atualmente, a espécie é classificada como “Quase Ameaçada” (NT) pela IUCN
lichenlover/iNaturalist
Esse processo meticuloso garante que as larvas tenham abrigo e alimento suficiente para os primeiros estágios da vida. Após um período de desenvolvimento dentro desse “casulo natural”, emergem como besouros totalmente formados, prontos para continuar o ciclo.
O tamanho do pescoço também pode influenciar na mobilidade do besouro, podendo reduzir a sua movimentação ou influenciar o voo, mas a vantagem reprodutiva desse dimorfismo sexual (o tamanho do pescoço em machos) pode superar essas limitações de mobilidade.
Mistérios a serem desvendados
Apesar de sua aparência marcante e comportamento fascinante, o besouro-girafa ainda é um enigma para os cientistas. Muitos aspectos de sua ecologia, como seu ciclo de vida e a existência de predadores naturais, permanecem pouco estudados.
Pouco se sabe sobre como essa espécie pode ser afetada pelas mudanças ambientais. O desmatamento de Madagascar representa uma ameaça crescente para inúmeras espécies endêmicas da ilha, incluindo o besouro-girafa. Sem dados detalhados sobre sua população e comportamento, torna-se difícil avaliar o impacto real dessas mudanças.
“A pesquisa sobre Trachelophorus giraffa enfrenta desafios significativos devido à sua distribuição restrita e à escassez de estudos sobre sua ecologia e comportamento. Apesar de ser uma espécie icônica pela morfologia particular, aspectos como sua dinâmica populacional, interações ecológicas e respostas às mudanças ambientais, ainda são pouco compreendidos”, informa Aline.
Fêmeas de besouro-girafa podem ter o pescoço cerca de duas a três vez menor em relação aos machos
Martin Etave/iNaturalist
Além disso, a especialista ainda explica que há lacunas no conhecimento sobre sua genética e variação morfológica ao longo de diferentes populações. Este tipo de informação é particularmente interessante para garantir a conservação dessa espécie.
Mesmo diante dessas incertezas, uma coisa é certa: o besouro-girafa é um exemplo impressionante das estratégias evolutivas que moldam a vida selvagem. Sua anatomia peculiar e seus hábitos únicos fazem dele um dos insetos mais intrigantes do mundo.
À medida que pesquisadores continuam a desbravar os mistérios da biodiversidade de Madagascar, poderemos no futuro descobrir ainda mais sobre esse pequeno gigante e seu extraordinário pescoço.
*Texto sob supervisão de Lizzy Martins
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