Dr. Rui, Geni, Herculano, Isabel e Arandir: os falsos moralistas

Nelson Rodrigues, jornalista e dramaturgo brasileiro, frequentemente descrito como um conservador em sua visão de mundo, foi um mestre em capturar e dissecar a alma brasileira através de suas obras. Com um olhar aguçado e uma pena afiada, ele criou personagens inesquecíveis que viviam em um universo permeado por hipocrisia, desejo e a eterna luta entre o que se mostra e o que realmente se é. Entre esses personagens, o “falso moralista” se destaca como uma figura recorrente e profundamente crítica na obra rodrigueana.

O “falso moralista” em Nelson Rodrigues é aquele personagem que ostenta uma fachada de retidão e moralidade, mas que, por trás das cortinas, vive uma realidade de desejos reprimidos, atos corruptos e uma moral flexível que se adapta às suas conveniências. Esse tipo de personagem serve como uma crítica mordaz ao que Rodrigues via como a hipocrisia social brasileira, onde a aparência de virtude era frequentemente mais valorizada do que a virtude real.

Esses personagens são exemplificados em várias de suas obras. Em “Toda Nudez Será Castigada”, temos a história de um viúvo que se mantém casto em homenagem à memória da esposa, mas que secretamente deseja libertar-se dessa promessa, refletindo a tensão entre o desejo pessoal e a imagem pública. Outro exemplo notável é o de “O Beijo no Asfalto”, onde um homem, após beijar um desconhecido moribundo em um ato de compaixão, é acusado de homossexualidade e vê sua vida desmoronar sob o peso dos julgamentos sociais.

A genialidade de Nelson Rodrigues está em sua capacidade de usar esses personagens para explorar temas universais, como a culpa, o desejo, e a falibilidade humana, através das particularidades da sociedade brasileira. Seus “falsos moralistas” não são apenas personagens em uma peça; eles são espelhos que refletem as incongruências entre o ser e o parecer que permeiam a vida cotidiana.

Portanto, ao desnudar a alma nacional, Nelson Rodrigues não fazia mais do que revelar, com uma sinceridade brutal, as complexidades e contradições do ser humano. Seu legado permanece relevante, desafiando-nos a olhar além das aparências e a confrontar a realidade das nossas próprias existências.

Nelson Rodrigues criou uma galeria de personagens icônicos que refletem os conflitos e dilemas morais da sociedade brasileira. Vamos explorar alguns deles e as situações vividas por cada um, que ilustram as características do “falso moralista” e outros temas recorrentes em suas obras:

Estes personagens de Nelson Rodrigues exemplificam não apenas a habilidade do autor em criar figuras complexas e multifacetadas, mas também sua crítica penetrante à sociedade que prefere manter as aparências em detrimento da verdade e da sinceridade nas relações humanas. Cada um desses personagens enfrenta julgamentos e conflitos que questionam as noções convencionais de moralidade e decência, fazendo da obra de Rodrigues um espelho incômodo, mas necessário, da realidade humana.

A moralidade ambígua

Herculano em “Toda Nudez Será Castigada”:

Herculano é um viúvo que promete ao filho nunca se casar novamente, mantendo uma imagem de homem casto e devotado à memória da esposa. No entanto, ele se envolve com uma prostituta chamada Geni, casando-se secretamente com ela. Este relacionamento revela sua hipocrisia e os conflitos internos entre o desejo e o dever moral imposto por ele mesmo.

Arandir em “O Beijo no Asfalto”:

Arandir é um homem comum que, em um gesto de compaixão, beija um desconhecido moribundo na boca, após um acidente. Esse ato é distorcido pela mídia e pela polícia, transformando Arandir em objeto de escândalo e desprezo público. A peça explora a crueldade e o sensacionalismo da sociedade, além da falsa moralidade que julga as ações dos outros sem compreender suas verdadeiras intenções.

Engraçadinha, Seus Amores e Seus Pecados”:

Situação: Engraçadinha é uma jovem de família tradicional que, apesar de sua aparência inocente e comportamento exemplar, vive uma vida dupla cheia de desejos proibidos e relacionamentos secretos. Ela é a quintessência do personagem rodriguiano que navega entre o respeito público e as paixões ocultas, expondo a hipocrisia das normas sociais.

Dr. Rui em “Álbum de Família”:

Dr. Rui é o patriarca de uma família disfuncional, que mantém uma relação incestuosa com a filha. Ele é respeitado na comunidade como um homem de grande moral e ética, mas sua vida privada revela uma realidade perturbadora e moralmente corrupta. A peça desafia a noção de moralidade e explora os abismos ocultos sob a superfície de uma família “respeitável”.

Sérgio em “Vestido de Noiva”:

Sérgio é o marido de Alaíde, uma das protagonistas da peça. Após um trágico acidente de carro que deixa Alaíde entre a vida e a morte, descobre-se que Sérgio teve um caso com a irmã de Alaíde, Lúcia. A revelação desses segredos e traições desenterra tensões e paixões reprimidas, culminando em um complexo drama familiar que se desenrola em três planos diferentes da consciência de Alaíde.

Madame Clessi em “Perdoa-me por me traíres”:

Madame Clessi é uma cortesã que se torna uma figura materna para Glorinha, uma jovem cuja mãe foi assassinada pelo próprio marido após descobrir que ela era infiel. Clessi tenta proteger Glorinha das verdades duras da vida, mas a jovem acaba seguindo os mesmos caminhos tortuosos de sua mãe. O personagem de Clessi navega entre o cinismo e o desejo genuíno de salvar Glorinha, refletindo sobre a transmissão de valores morais e o peso do destino.

Dr. Paulo em “A Falecida”:

Dr. Paulo é o marido desatento de Zulmira, que está obcecada com a ideia de ter um funeral luxuoso após sua morte, acreditando que isso lhe garantiria respeito e status. Dr. Paulo, apesar de amar sua esposa, é infiel e negligente, refletindo a desconexão entre suas ações e as expectativas de Zulmira. O drama explora as ironias da vida e da morte, e o desejo de reconhecimento póstumo como compensação pelas decepções da vida.

Isabel em “Senhora dos Afogados”:

Isabel é a filha de Misael, cuja família é assombrada por uma “maldição” que diz que todas as mulheres da família serão infiéis. Quando Isabel é acusada de seguir o mesmo caminho de adultério, o conflito central se intensifica, revelando as profundezas da desconfiança e do desespero que cercam a família. A peça explora temas como destino, honra e a brutalidade dos julgamentos sociais.

Esses personagens continuam a revelar as profundezas e contradições da condição humana, cada um deles enfrentando dilemas morais que desafiam as convenções sociais e pessoais. Nelson Rodrigues, com sua capacidade única de explorar a psique humana através do teatro, apresenta um retrato crítico e muitas vezes perturbador das realidades ocultas por trás das fachadas de normalidade.

Pedro em “O Casamento”:

Pedro é um jovem que enfrenta um conflito interno profundo ao descobrir que está apaixonado por sua irmã, Maria Cecília. A tensão entre seu desejo proibido e a moralidade social que condena tal sentimento é o núcleo da peça. Pedro é um exemplo clássico do personagem rodriguiano que luta contra as convenções sociais e seus próprios impulsos, destacando as contradições entre o desejo e a moralidade.

Moacir em “Boca de Ouro”:

Moacir é um bicheiro temido e respeitado na comunidade, conhecido por sua dentadura de ouro. Após sua morte, a narrativa da sua vida é reconstruída através de diferentes versões contadas por sua amante, Dona Guigui. Moacir é um personagem que revela as muitas facetas que uma pessoa pode ter, dependendo de quem conta sua história, explorando temas de poder, legado e identidade.

Flor de Lys em “Meu Destino é Pecar”:

Flor de Lys é uma mulher que se vê presa em um triângulo amoroso com dois irmãos, revelando os conflitos e paixões que dominam a existência dos personagens. Sua luta interna entre a paixão que sente e as expectativas sociais sobre a moralidade e o comportamento feminino expõe a hipocrisia das normas sociais que regem o amor e o desejo.

Jovelino Sabonete em “O Homem que Amava as Gordinhas”:

Jovelino é um serial killer com uma predileção peculiar: ele assassina mulheres gordinhas. Esse personagem extremo serve para criticar e satirizar as obsessões sociais com a imagem corporal, ao mesmo tempo em que expõe a escuridão humana de maneira hiperbólica e dramática.

Mitzi em “Álbum de Família”:

Mitzi, nora de Dr. Rui, se encontra em um relacionamento proibido e incestuoso com seu sogro. Ela é um exemplo de como Nelson Rodrigues não tem medo de abordar tabus e explorar os cantos mais sombrios da alma humana. Mitzi, com sua complexidade e conflitos, ilustra a tragédia de desejar aquilo que é socialmente condenado.

Estes personagens, como muitos outros criados por Nelson Rodrigues, são profundamente humanos em suas imperfeições e dilemas. Eles são jogados em situações extremas que exploram as fraturas entre o público e o privado, o dito e o não dito, revelando a teia complexa de emoções e contradições que define a existência humana.

Geni em “Toda Nudez Será Castigada”:

Geni é uma prostituta que se envolve com Herculano, um viúvo que prometera ao filho nunca mais se casar. Sua relação com Herculano é marcada por um misto de amor genuíno e manipulação, destacando o conflito entre o desejo e o dever, e a capacidade do amor de transcender as barreiras sociais.

Glauce em “Anjo Negro”:

Glauce é a esposa de Ismael, um homem negro que deseja gerar um filho branco para “purificar” sua descendência. Glauce, ao se ver incapaz de satisfazer esse desejo, torna-se uma personagem trágica cuja existência é dilacerada pelo racismo, pela traição e pela loucura. A peça explora temas de identidade racial, desejo e destruição.

Lucio em “Perdoa-me por me traíres”:

Lucio é o tio de Raul, um jovem que se suicida após ser chantageado por uma prostituta. Lucio, que inicialmente parece ser um tutor preocupado e moralmente íntegro, revela-se manipulador e vingativo, engajando-se num plano sinistro para vingar a morte do sobrinho, expondo as profundezas de sua hipocrisia moral.

Sônia em “A Serpente”:

Sônia é uma das irmãs protagonistas que vivem uma história de ciúmes, traição e morte. Em um momento de desespero, Sônia propõe a própria morte como solução para os conflitos conjugais de sua irmã. A peça explora temas de sacrifício extremo, desejo e a complexidade das relações humanas.

Creusa em “Os Sete Gatinhos”:

Creusa é a filha “pura” de uma família, que supostamente será a redenção da família por ser a única virgem entre as irmãs. No entanto, a revelação de que Creusa também levava uma vida de prostituição clandestina desencadeia uma crise familiar que revela os segredos e as hipocrisias da família. A peça desafia a idealização da pureza e a moralidade social imposta.

Esses personagens de Nelson Rodrigues nos conduzem por um labirinto de emoções humanas complexas e muitas vezes perturbadoras, refletindo as contradições e as tensões morais da sociedade. Cada um, a seu modo, revela as facetas ocultas do comportamento humano, frequentemente escondidas sob a superfície de respeitabilidade e normalidade.

Dona Ivone em “Viúva, Porém Honesta”:

Dona Ivone é a mãe de Ivonete, que se recusa a sair da cama após ficar viúva. Determinada a trazer a filha de volta à vida ativa, Dona Ivone recorre a métodos nada ortodoxos, incluindo a contratação de um sedutor profissional. A personagem ilustra o pragmatismo extremo em situações desesperadas, misturando comédia e crítica social.

Zulmira em “A Falecida”:

Zulmira é uma mulher obcecada com a ideia de ter um funeral luxuoso, acreditando que isso compensaria a mediocridade de sua vida. Enfraquecida por uma doença terminal, ela manipula e planeja detalhes de sua própria morte, expondo a vaidade e o desespero humano diante da mortalidade.

Cacilda em “O Eterno Retorno”:

Cacilda é uma personagem que, após um incidente que a faz acreditar que seu marido é infiel, passa por uma transformação radical. Ela confronta o marido e suas próprias inseguranças, oscilando entre a raiva e o desejo de reconciliação. A peça explora as complexidades do amor, traição e o ciclo repetitivo de conflitos e perdões.

Ribamar em “Os Sete Gatinhos”:

Ribamar é o pai de Creusa e suas irmãs, que coloca todas as esperanças em Creusa para “salvar” a honra da família. Quando ele descobre que Creusa também se prostituiu, sua decepção e desespero levam a atos extremos. Ribamar representa a figura paterna que impõe expectativas irrealistas e moralmente questionáveis sobre seus filhos.

Arlete em “O Anjo Pornográfico”:

Arlete é uma personagem intrigante que se envolve em um relacionamento proibido, destacando a luta interna entre o desejo e a moralidade. Ela é uma mulher que desafia as convenções sociais, usando sua sexualidade como forma de poder e liberação, mesmo que isso signifique enfrentar o julgamento público.

Cada um desses personagens traz à tona aspectos distintos da vida social e pessoal, iluminando as contradições e os dilemas morais que Nelson Rodrigues tão habilmente retratava em suas obras. Seu talento para criar personagens complexos e situações dramáticas continua a fascinar e provocar reflexões críticas sobre a natureza humana.

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