Rio de Janeiro, cenário do samba e do trap, faz 460 anos como uma cidade partida também na trilha sonora plural


‘Rainha da favela’ do funk de Ludmilla hoje divide espaço com a ‘Garota de Ipanema’ de Tom & Vinicius em repertório que, além de exaltar as belezas, denuncia também as violências sociais da metrópole. ♫ ANÁLISE
♪ O orgulho de viver no Rio de Janeiro (RJ) é o mesmo, mas há diferença abissal entre a abordagem romantizada da Valsa de uma cidade (Ismael Neto e Antônio Maria) – música apresentada em 1954 na voz do cantor Lúcio Alves (1927 – 1993) – e o enfoque realista de Vila Vintém nos versos do trap Um minuto, lançado em janeiro deste ano de 2025 em gravação que une Dom7 com L7nnon e ZL. Os rappers versam com altivez e brio sobre o cotidiano da comunidade da zona oeste da cidade, mas sem maquiar realidade povoada por carências.
Exatos 71 anos separam Valsa de uma cidade do trap Um minuto. De lá para cá, o mundo mudou, o Brasil mudou, o Rio mudou. É por isso que, fundada em 1º de março de 1565, a cidade faz hoje 460 anos com uma trilha sonora cada vez mais multifacetada. Obra sempre em progresso, essa trilha plural ressalta as belezas, mas também o caos da cidade partida também na música.
Se o Rio de Janeiro continua lindo, como sentenciou Gilberto Gil em 1969 no verso do samba Aquele abraço, a cidade também permanece agitada por violência cotidiana nunca imaginada em tempos idos e sufocada por calor tão extremo que urge atualização do verso-título de Rio 40 graus (Fernanda Abreu, Carlos Laufer e Fausto Fawcett, 1992), hino extraoficial da cidade-maravilha.
Sim, as belas paisagens cariocas justificam o encanto manifestado pelo soberano Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994) nos versos de Corcovado (1960) e do Samba do avião (1962). Só que a chapa nunca esteve tão quente, literal e metaforicamente, e por isso a banda carioca Planet Hemp foi hardcore na letra de Zerovinteum (Marcelo D2, BNegão, Black Alien e Formiga, 1997), crônica de cidade-desespero assombrada por assassinatos, fobias, pânicos e violências que se revela atual, mesmo tendo sido escrita há 28 anos.
Entre a nostalgia romântica do samba Rio antigo (Como nos velhos tempos) (Nonato Buzar e Chico Anísio, 1979), as manhas da população perfilada pela gaúcha Adriana Calcanhotto com a verve do versos de Cariocas (1998) e a exaltação do subúrbio de Madureira feita por Arlindo Cruz em Meu lugar (parceria com Mauro Diniz, de 2007), a trilha sonora da cidade ganhou outras batidas, musicas e nuances.
A Garota de Ipanema cantada por Tom Jobim e Vinicius de Moraes (1913 – 1980) no samba de 1962 –trilha preferencial da bossa nova no mundo – hoje divide espaço de igual para igual com a Rainha da favela do funk lançado por Ludmilla em 2020 com clipe que juntou a cantora fluminense com as figuras imponentes de MC Carol, MC Kátia, Tati Quebra Barraco e Valesca Popozuda.
As rainhas da favela são cantadas em versos e funks. E, sim, elas são tão cariocas como a musa de Ela é carioca, samba de Tom & Vinicius lançado em 1963 pelo conjunto Os Cariocas. Seguidores da bossa de Tom & Vinicius, os compositores Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli (1928 – 1994) exaltaram a cidade com maravilhas ainda e sempre contemporâneas como Rio (1963).
Esse Rio de mar, sal, céu, sol e (zona) sul, habitat do Menino do Rio (1979) decantado por Caetano Veloso, também inspirou Joyce Moreno na criação de várias músicas sobre a cidade (Rio meu, E era Copacabana – samba-canção em parceria com Carlos Lyra (1933 – 2023) – e Tardes cariocas) e guiou Tim Maia (1942 – 1998) na rota do aliciante funk Do Leme ao Pontal (1981).
Entre o Leme e o Pontal, há Copacabana, musa do homônimo samba-canção de Braguinha (1907 – 2006) e Alberto Ribeiro (1920 – 2000) apresentado em 1946 na voz moderna de Dick Farney (1921 – 1987). Copacabana faz ode à Princesinha do mar, cuja orla também é celebrada em Manhã no Posto 6 (Armando Cavalcanti, 1963), samba menos conhecido do repertório do cantor Wilson Simonal (1938 – 2000).
Só que, como reitera o recente trap Um minuto, a geografia musical da cidade vem se ampliando. Em rota distante dos cartões postais do Rio, MCs Junior & Leonardo mapearam em 1995 o Endereço dos bailes, funk situado em regiões da cidade partida que inspiram a poesia de funkeiros, rappers e trappers.
Artistas desses gêneros musicais ainda sofrem preconceitos por conta da segregação musical e social que Chico Buarque já sinalizou há 27 anos nos versos do samba Carioca (1998). O mesmo Chico contribuiu para ampliar o mapa musical da cidade em Subúrbio (2006), berço dos pagodes dos mais nobres quintais cariocas, dos quais brotou na década de 1980 toda a geração de sambistas do Cacique de Ramos, hábeis cronistas da cidade.
Enfim, em qualquer parte e em que pese todo o caos, o Rio de Janeiro ainda tem encantos mil, como sentenciou verso da marcha Cidade maravilhosa (André Filho, 1934), hino de antigos Carnavais que atravessa gerações, unindo os cariocas em torno do orgulho de morar na cidade tida como a mais linda do mundo.
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