Pacientes cegos após mutirão de catarata: como funcionam indenizações em erros médicos no SUS


Caso de 13 pacientes que perderam visão no interior de SP abriu debate sobre como reparar danos causados pelo Estado. Procuradoria-Geral diz que indenização administrativa pressupõe desistência de processos judiciais. MP investiga por que 12 pessoas ficaram cegas ou com sequelas após mutirão de catarata
Reprodução/TV Globo
O caso dos 13 pacientes que ficaram cegos após um mutirão de cirurgias de catarata no Ambulatório Médico de Especialidades (AME) de Taquaritinga (SP) abriu um debate sobre indenizações em casos de erros médicos causados pelo Estado, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
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No fim de fevereiro, o g1 noticiou que o governo de São Paulo quer que pacientes desistam de processos judiciais antes de propor uma indenização administrativa.
De acordo com a Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, no caso do mutirão de catarata, a proposta administrativa será pensada de forma “individualizada de cada caso concreto”, considerando a “extensão do dano e situação pessoal dos pacientes”.
O pagamento de indenização pelo Estado é uma forma de reparação financeira destinada a indivíduos ou famílias que tenham sido prejudicados por ações ou falhas cometidas pelo poder público. Essa compensação é prevista em lei e busca ressarcir os prejuízos causados por condutas estatais que resultem em danos materiais ou morais, como é o caso dos pacientes.
Thiago Massara, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em processo administrativo, explica que não há uma regulação clara na legislação brasileira sobre o valor indenizatório, que pode variar de caso para caso.
“Nós não temos no Brasil uma lei sobre responsabilidade do Estado. Temos o Código Civil, que trata de responsabilidade civil entre particulares e temos a responsabilidade do Estado. Não tem uma lei própria, temos uma norma constitucional genérica que é aplicada pelos juízes nos casos concretos, mas não há um parâmetro, uma lista de parâmetros indicadas pelo legislador, então os juízes vão arbitrar para isso geralmente no caso”, diz.
Por este motivo, é preciso entender o que geralmente é considerado pela Justiça no momento de definir os valores de uma indenização.
Em levantamento feito pelo g1, constatou-se que em outros processos envolvendo pacientes cegos em catarata, o valor indenizatório variou de R$ 20 mil e R$ 150 mil, com ou sem pensão vitalícia.
Critérios para indenização
Apesar de não haver critérios estabelecidos do valor da indenização e sobre uma pensão vitalícia, o professor Massara explica que o contexto socioeonômico, a gravidade do dano, o impacto moral e o sofrimento psicológico devem ser levados em conta na elaboração do pedido indenizatório, seja por vias administrativas ou judiciais.
Fatores como número de filhos ou dependentes, salário anterior ao dano, custos de tratamento ou com nova condições de vida, invalidez laboral, necessidade de cuidados e tratamentos em casa e a gravidade da invalidez são analisados para o pedido e aprovação do valor indenizatório.
“O correto é mensurar a partir do dano, daquilo que a pessoa perdeu materialmente e também o sofrimento, o dano moral, também aquilo que a pessoa vai deixar de ganhar. Então, por exemplo, se a pessoa tinha um trabalho de R$ 5 mil, eu tenho que calcular mais ou menos a vida útil da pessoa considerando esse valor, se ela tinha um trabalho de R$ 20 mil, aí mudo o cálculo”, diz.
O aposentado José Bernardino dos Santos, de 88 anos, também perdeu a visão em mutirão de catarata em Taquaritinga
Wesley Almeida/EPTV
No caso dos pacientes de Taquaritinga, a maior parte é idosa, perdeu a fonte de renda e teve uma série de gastos desde outubro de 2024, quando as cirurgias aconteceram. Alguns relatam desespero pela falta de recursos.
“Minha vida parou depois dessa cirurgia. Não posso mais trabalhar e minha renda sumiu. Me sinto um zero à esquerda, sem poder fazer nada e dependendo dos outros para tudo”, lamenta, Mauri Guarniere, 56 anos, que vendia pães no semáforo em Ibitinga (SP) antes de perder a visão.
Maria de Fátima Garcia Chiari, de 67 anos, é uma das pacientes em estado mais grave. Ela corre o risco de perder todo o globo ocular e, desde que perdeu completamente a visão, está sem condições de trabalhar. Antes salgadeira, ela depende da indenização para se manter financeiramente.
Na reunião com a Defensoria, Maria foi informada de que precisaria elaborar o pedido de indenização junto ao defensor e que não havia uma proposta pronta. Foi sugerido que ela pedisse R$ 100 mil e mais dois salários mínimos vitalícios, valor que considerou insuficiente.
“Cem mil não é nada para quem perdeu um olho e sofreu tanto. Meu olho está aqui para quem quiser ver. Estou com tanta dor, sofrimento e sem condições”, desabafou.
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Indenização administrativa x indenização judicial
A indenização pode ser solicitada tanto pela via administrativa, quando é solicitada diretamente contra o Estado ou entidades públicas, ou pela via judicial, pedida em ações judiciais entre particulares (pessoas físicas ou jurídicas) ou entre particulares e o Estado, mas com base no direito civil.
No primeiro caso, o início do processo ocorre no próprio âmbito da administração pública, sem que haja envolvimento da esfera judicial. Por este motivo, a tendência é que o processo seja mais rápido e simples. Já na esfera judicial, o processo pode se arrastar por um tempo maior.
O promotor Ilo Wilson Marinho Gonçalves Júnior
Reprodução/EPTV
No caso dos pacientes lesados no mutirão, o Governo de SP e a Secretaria Estadual de Saúde tinham indicado que apresentariam uma proposta fechada, já com os valores para serem ou não aceitas pelos pacientes, o que não aconteceu. Além disso, de acordo com os pacientes e advogados, impuseram a condição de desistência dos processos judiciais para iniciar o pedido.
Segundo o procurador de Justiça Ilo Wilson Marinho Gonçalves Júnior, que apura o caso, o ressarcimento financeiro tem caráter mais educativo do que reparador, em razão da gravidade do problema.
“Não tivemos qualidade [no serviço], não tivemos responsabilidade e, em razão disso, sanções ocorrerão em relação a quem quer que tenha que responder. Nesse sentido, não há dinheiro no mundo que pague a dor que essas vítimas estão sofrendo, mas elas precisam ser indenizadas. Elas serão com certeza indenizadas”, disse.
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Proposta sem valor deixa pacientes inseguros
Advogada de cinco dos 13 pacientes, Marília Natália da Silva avalia que não há vantagem em trocar um processo judicial por um administrativo neste caso, especialmente porque não há garantia de que os valores pedidos serão aprovados.
Caso uma proposta com valores já estabelecidos fosse apresentada, de acordo com a advogada, seria mais fácil definir se valeria a pena seguir por vias administrativas ou judiciais.
“Há um risco muito grande porque não veio proposta de valores. O que eles falaram foi: ‘monte um processo via administrativa, faça os pedidos, e vamos analisar para ofertar um valor para cada um, dependendo da extensão do dano’. Então, o que esperávamos [uma proposta fechada] não veio”, explicou a advogada.
Massara explica que no processo de negociação entre a vítima e o Estado, é possível condicionar a indenização administrativa à desistência de ações judiciais, mas somente no momento da assinatura do acordo, e não durante as negociações.
“Esses acordos são completamente negociáveis. A administração pública pode colocar a desistência da ação judicial como condição, mas isso não é uma obrigatoriedade. A vítima pode seguir com o processo judicial até que o acordo seja assinado”, diz.
Ele ressalta que a desistência da ação judicial só deve ocorrer no fim da negociação, quando o acordo já está escrito e a vítima sabe exatamente o valor que receberá. Após o acordo administrativo, dificilmente uma nova indenização seria concedida na esfera judicial.
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