Frei Beto não desiste, apesar de Helder Barbalho

Através do filme “Ainda estou aqui”, um grupo formado apenas por artistas – diretor de cinema, atrizes, atores e um escritor –  conseguiu lançar luz sobre um pedaço da História recente de nosso País, obscurecido por anos de silencio e distorção da verdade.

Eles fizeram justiça a um político brasileiro, o deputado Rubens Paiva, morto selvagemente pela Ditadura Militar que dominou o Brasil durante 21 anos.

Uma mesma disposição para arejar a memória de seu passado, o Pará, porém, não conseguiu mostrar.

Deixando de corrigir injustiças daquele mesmo período tenebroso.

As ocorridas em Belém, no âmbito da Igreja Católica.

Embora, há mais de 20 anos, o extinto jornal A Província do Pará tenha publicado um caderno especial com a reconstituição do pesadelo vivido por três padres, em Belém.

Todos afinados com as encíclicas do Papa João XXIII  que pregavam o engajamento político em busca de Justiça Social.

E que, por esta razão, foram perseguidos sob a falsa acusação de serem comunistas.

Aquele caderno, encartado na edição de A Província, como era previsível, provocou enorme rebuliço nas hostes dos paraenses que tinham apoiado o Golpe Militar.

Gerando reações públicas raivosas de políticos e jornalistas locais.

Tais reações se intensificaram, quando a reconstituição daqueles dias foi ampliada e publicada em livro pela Editora Paka-Tatu.

Ambos os trabalhos foram assinados por mim

Não só na condição de pesquisador do tema “O destino dos cristãos chamados na época, de progressistas que se engajaram na atuação política em busca de Justiça Social, por inspiração do Papa camponês, durante o Golpe Militar de 1964”.

Eu já tinha obtido o título de Mestre em Jornalismo, na Universidade Metodista de São Paulo, como pesquisador daquele tema, quando assinei as duas publicações.

E daquele tema, desde então, nunca me afastei.

Pois, acredito que a única chance de surgir e subsistir, no Brasil, uma sociedade socialista humanista, só existirá se nela, a par de outras influências econômicas e filosóficas,  forem incorporadas também a sensibilidade e a empatia com o sofrimento das pessoas exploradas, pregadas pela Doutrina Social da Igreja.

Sensibilidade e empatia que eram evidentes na atuação daqueles três padres.

Recentemente, escrevi outro livro sobre este assunto, que foi lançado na última Bienal do Livro de São Paulo.

Mas, além do conhecimento que me trouxeram as pesquisas para a elaboração destas publicações, eu pude obter outra espécie de conhecimento sobre aqueles padres, mais profundo e duradouro, quando, aos 15 e 16 anos, atuei na entidade estudantil secundarista do Pará, como secretário do grêmio do Seminário de Belém, e, pude entender melhor a militância deles.

O caderno e o livro não surgiram gratuitamente.

Mas provocados pelas denúncias que, a partir de 1999, uma das figuras mais salientes do catolicismo do Brasil, frei Betto, passou a fazer em entrevistas e textos veiculados nacionalmente.

Ele proclamava pública e abertamente o seguinte.

Que estava em Belém, no dia do Golpe Militar, hospedado no palácio do arcebispo dom Alberto Gaudêncio Ramos.

Ali, ele fora instalado porque exercia a função de coordenador nacional da Juventude Estudantil Católica – a JEC, um dos órgãos da Ação Católica Brasileira.

Dois dos jovens estudantes paraenses que ligados à JEC de Belém eram Jader Barbalho, e, sua futura esposa, Elcione Barbalho. 

No palácio ,revelava frei Betto, ele viu, com angústia, dom Alberto Ramos entregar à repressão militar golpista, num programa de televisão, nomes de padres de seu clero que seriam comunistas.

Ao tomar conhecimento desta denúncia, eu imediatamente soube quem poderia ser os padres mencionados por dom Alberto.

Porque dois deles moravam no próprio palácio arquiepiscopal. E, lá, frequentemente, eu pernoitava, para poder ajudar, no dia seguinte, na celebração das missas do arcebispo, em sua pequena capela, assim como para acompanhá-lo em suas viagens pelo interior do Pará.

Eles eram o brilhante teólogo Diomar Lopes, meu professor de Latim, no Seminário, assistente espiritual da Juventude Universitária Católica- JUC.

E o padre Aluysio Neno, responsável pelo programa de alfabetização de adultos do Movimento de Educação de Base, desenvolvido pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.

Havia ainda um terceiro padre, o poeta Moisés Lindoso, assistente espiritual da Juventude Operária Católica – JOC que frequentemente visitava o palácio porque cuidava do Lar Sacerdotal, instalado nas proximidades.

Soube que se tratava deles porque os três foram em seguida expulsos do clero do Pará. Numa medida tomada por dom Alberto

Que ele, depois, tentaria justificar, num livro, sustentando como provocada pela pressão que sofria do Comandante Militar da Amazônia, o general Orlando Ramagem.

Aqueles dias de tensão, angústia e amargura abalaram meu equilíbrio emocional. Fui aconselhado por um médico a sair do Pará. Aos 17 anos viajei para São Paulo. Só retornei e voltei a morar em Belém 30 anos depois.

De qualquer forma, depois disto, o Pará, como o resto do Brasil,atravessou a fase da “Ditadura dentro da Ditadura”, com a decretação do AI-5, a da” lenta, gradual e segura” abertura política ditada pelos militares, a da anistia dos asilados e dos torturadores, a da volta das eleições diretas,a do impeachment de Collor, a dos governos de Lula e Dilma, e a do desastre bolsonarista.

Sessenta anos se passaram.

Quando, no ano passado, em Ananindeua,o governo do filho daqueles dois antigos simpatizantes da JEC, Jader e Elcione, inaugurou, ano passado, uma nova escola.

No exercício do cargo de governador do Pará, surgiu para Helder Barbalho uma ocasião oportuníssima na qual ele, inspirado pela juventude de seus pais, poderia esboçar um gesto de justiça para com aqueles padres,semelhante ao promovido pela equipe do filme “Ainda estou aqui”. Bastaria dar à escola o nome de um deles.Mas, o nome de quem o governo de Helder Barbalho escolheu para homenagear, naquela ocasião?

O de dom Alberto Gaudêncio Ramos.

Para as crianças que ali vão estudar a possibilidade de surgir alguma circunstância que lhes permita saber o que aconteceu no clero da capital do Estado, em 1964 ficou distante.

Quem sabe, no entanto, esta circunstância possa aparecer graças, de novo, a frei Betto?

Porque ele não desistiu.

Numa entrevista sobre a passagem dos 60 anos da implantação da Ditadura, concedida em São Paulo, à jornalista Eleonora de Lucena, no mesmo período da inauguração da escola de Ananindeua, a primeira pergunta que ele ouviu foi:

– Onde o senhor estava no dia 1º de Abril de 1964?

A resposta do religioso foi, novamente, claríssima:

– Estava no Congresso Latino-americano de Estudantes, em Belém, no Pará, hospedado na casa do arcebispo, dom Alberto Ramos. Quando houve o golpe, o congresso foi literalmente desbaratado. Cada um dos participantes foi para onde podia ir. Eu saí da casa do arcebispo porque ele começou a delatar padres como subversivos. E fui me refugiar na casa de um militante da JEC, Lauro Carneiro.

*Oswaldo Coimbra é escritor e jornalista

         Translation (tradução)

Frei Betto Does Not Give Up, Despite Helder Barbalho

Through the film I’m Still Here, a group composed solely of artists—a film director, actresses, actors, and a writer—shed light on a chapter of Brazil’s recent history that had been obscured by years of silence and distortion of the truth.

They did justice to a Brazilian politician, Congressman Rubens Paiva, who was brutally murdered by the military dictatorship that ruled Brazil for 21 years.

However, Pará did not demonstrate the same willingness to confront its past and correct the injustices of that same dark period—particularly those that occurred in Belém within the Catholic Church.

More than 20 years ago, the now-defunct newspaper A Província do Pará published a special supplement reconstructing the nightmare experienced by three priests in Belém. These priests aligned themselves with the encyclicals of Pope John XXIII, which advocated for political engagement in pursuit of social justice. As a result, they were persecuted under the false accusation of being communists.

That supplement, included in A Província do Pará, as expected, caused an uproar among Pará’s elites who had supported the military coup, triggering furious public reactions from local politicians and journalists.

These reactions intensified when the reconstruction of those events was expanded and published as a book by Paka-Tatu Publishing House. Both the supplement and the book were authored by me.

Not only as a researcher of the theme “The fate of Christians labeled as progressives at the time, who engaged in political activism for social justice, inspired by the peasant Pope during the 1964 military coup,” but also as someone with academic expertise in the subject—I had already earned a Master’s degree in Journalism from the Methodist University of São Paulo when I authored both publications.

Since then, I have never distanced myself from this topic. I believe that the only chance for a humanist socialist society to emerge and endure in Brazil lies in incorporating, alongside other economic and philosophical influences, the sensitivity and empathy for the suffering of the exploited—principles advocated by the Church’s Social Doctrine.

Such sensitivity and empathy were evident in the actions of those three priests.

Recently, I wrote another book on this subject, which was launched at the last São Paulo Book Biennial. However, beyond the knowledge I gained through research for these publications, I obtained a deeper, more enduring understanding of those priests during my youth. At 15 and 16 years old, I was active in Pará’s secondary school student movement, serving as the secretary of the student council at the Belém Seminary, which allowed me to better understand their activism.

The supplement and the book did not emerge spontaneously. They were provoked by the denunciations made by one of the most prominent figures of Brazilian Catholicism, Frei Betto, who, starting in 1999, began making public statements in interviews and nationally circulated articles.

He openly declared the following:

That he was in Belém on the day of the military coup, staying at the palace of Archbishop Dom Alberto Gaudêncio Ramos. He had been accommodated there in his role as national coordinator of the Catholic Student Youth (JEC), one of the organizations of Catholic Action in Brazil.

Two young students from Pará who were connected to the JEC in Belém were Jader Barbalho and his future wife, Elcione Barbalho.

Frei Betto revealed that he witnessed, with anguish, Archbishop Dom Alberto Ramos handing over the names of priests from his clergy to the coup-supporting military repression on a television program, accusing them of being communists.

Upon learning of this denunciation, I immediately knew which priests Dom Alberto was referring to. Two of them lived in the archbishop’s palace, where I frequently spent the night to assist with Mass in his private chapel and accompany him on trips to the interior of Pará.

They were the brilliant theologian Diomar Lopes, my Latin professor at the seminary and spiritual advisor to the Catholic University Youth (JUC), and Father Aluysio Neno, responsible for the adult literacy program of the Basic Education Movement, developed by the National Conference of Bishops of Brazil.

There was also a third priest, the poet Moisés Lindoso, the spiritual advisor of the Catholic Worker Youth (JOC), who often visited the palace as he was responsible for the Priestly Home, located nearby.

I knew it was them because all three were soon expelled from Pará’s clergy by Dom Alberto. He later attempted to justify this decision in a book, claiming he was under pressure from the Amazon Military Commander, General Orlando Ramagem.

Those days of tension, anguish, and sorrow shook my emotional stability. A doctor advised me to leave Pará. At 17, I traveled to São Paulo, only returning and settling in Belém 30 years later.

Since then, Pará, like the rest of Brazil, has experienced various political phases: the “dictatorship within the dictatorship” with the AI-5 decree, the “slow, gradual, and secure” political opening dictated by the military, the amnesty of both exiles and torturers, the return of direct elections, the impeachment of Collor, the governments of Lula and Dilma, and the Bolsonaro disaster.

Sixty years have passed.

Last year, in Ananindeua, the son of those two former JEC sympathizers, Jader and Elcione, now the governor of Pará, Helder Barbalho, inaugurated a new school.

In his position as governor, Helder Barbalho had a golden opportunity to make a gesture of justice toward those priests—similar to what the team behind I’m Still Here did. All it would have taken was naming the school after one of them.

But whose name did Helder Barbalho’s government choose to honor on that occasion?

That of Dom Alberto Gaudêncio Ramos.

For the children who will study there, the chances of ever learning about what happened within the clergy of the state capital in 1964 have now become even more remote.

However, perhaps this knowledge might resurface once again, thanks to Frei Betto.

Because he has not given up.

In an interview about the 60th anniversary of the military dictatorship, given in São Paulo to journalist Eleonora de Lucena at the same time as the Ananindeua school inauguration, the first question he was asked was:

  • Where were you on April 1, 1964?

The religious leader’s response was once again crystal clear:

  • I was at the Latin American Student Congress in Belém, Pará, staying at Archbishop Dom Alberto Ramos’ residence. When the coup took place, the congress was literally dismantled. Each participant fled where they could. I left the archbishop’s house because he began denouncing priests as subversives. I sought refuge in the home of a JEC activist, Lauro Carneiro.

Oswaldo Coimbra is a writer and journalist.

*(Illustration: A photo of the poet-priest Moisés Lindoso in the poor community of Pernambuco, where he lived until his death.)

The post Frei Beto não desiste, apesar de Helder Barbalho appeared first on Ver-o-Fato.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.