Associações de cannabis medicinal se emancipam da Anvisa

Apesar da luta contínua que as associações de pacientes de cannabis enfrentam diariamente de norte a sul do país, de vez em quando surge algo para se comemorar. Desta vez, foi a conquista da AbraRio ao direito de cultivo dos remédios de mais de 3.000 pessoas que a ONG atualmente atende –e a previsão é que esse número dobre até o fim de 2026. A reportagem que trata do caso é do portal Poder 360.

A decisão em 2ª instância (onde não cabe mais recurso), tomada de forma unânime por 3 desembargadores do TRF-2, no Rio, em 18 de março, é inédita no Brasil e, certamente, também a coroação do trabalho de Marilene Oliveira, a 1ª mulher negra a presidir uma associação de pacientes no país. Ela fundou o coletivo em 2020 com o objetivo de ajudar outras famílias que, assim como a sua, haviam sido impactadas de forma positiva pela planta. 

Na sua biografia, a erva entrou de forma decisiva para controlar as crises de convulsão que o filho, portador da rara síndrome de Rasmussen, sofria diariamente desde os 4 anos de idade. Hoje, aos 20 anos, ele se trata só com a planta. Abandonou os remédios alopáticos e já não tem nenhuma crise há alguns anos.

Marilene e a AbraRio receberam, no final de 2024, uma boa e uma má notícia na liminar de 1ª instância sobre o processo. A boa era que sim, eles teriam aval para o cultivo de maconha medicinal. A má, na verdade, era péssima, pois tornava a boa quase impossível de ser realizada: atrelado ao direito do plantio, estava a exigência de seguissem normas que a Anvisa estabeleceu para a venda nas farmácias, pela RDC 327.

A lógica mercadológica da Anvisa

E como é – diz a matéria do Poder 360 – que uma associação de pacientes sem fins lucrativos vai se adequar às normas de padrão farmacêutico corretamente exigidas pela Anvisa às milionárias farmacêuticas? A única associação de pacientes que atualmente opera na lógica mercadológica e tem uma estrutura de empresa farmacêutica é a Abrace, que, veja que curioso, só vestiu terno e gravata depois de ser pressionada pela União para que se enquadrasse às tais padronizações da 327.

Fora ela, a estrutura financeira das demais associações não permitiria arcar com custos de uma licença para comércio, pois funcionam dentro de uma lógica de distribuição, não de venda.

A verdade é que qualquer decisão que defenda a adoção destes padrões pelas associações de pacientes ou é fonte de desinformação, o que impediria de perceber estarmos diante da elitização do acesso ao direito da saúde, ou de má-fé, o que seria ainda pior. No caso da AbraRio, tudo indica ser a 1ª hipótese. 

Com a intenção de agilizar a autorização da associação e por entender tratar-se de uma ONG de atuação fundamental e urgente na manutenção da saúde de mais de 3.000 pessoas, o juiz deferiu a solicitação em liminar, mas vinculou à decisão a RDC 327, a escolha aparentemente mais razoável quando há apenas duas disponíveis, sendo que a outra, RDC 660, versa sobre produtos importados. Nenhuma delas, portanto, adequada para o funcionamento das associações.

Precedente para a Apepi

Quando, por fim, o recurso apresentado por Ladislau Porto, advogado do caso, chegou à 2ª instância no TRF-2, continua a reportagem, entendeu-se, por unanimidade, que Anvisa e União a rigor, não deveriam sequer participar do processo, pois nenhuma regra foi criada especialmente para as associações.

“Os desembargadores disseram que a Anvisa e a União não precisam fazer parte do processo, basta uma decisão do juiz para autorizar ou não novas associações, portanto decidiram que não há relação jurídica com a Anvisa em nenhum caso”, explica o advogado. Isso não quer dizer, no entanto, que a Anvisa não deva seguir fiscalizando as boas práticas de qualidade e segurança dos coletivos de pacientes.

A decisão histórica abre precedente para que outras associações de pacientes possam se apoiar na mesma tese que a AbraRio, e, assim como ela, conquistar o direito de cultivar, produzir e distribuir entre os pacientes associados diversos subprodutos de cannabis, para além do óleo e do extrato, com segurança jurídica. 

A Apepi, uma das primeiras ONGs e maior plantação de cannabis medicinal do país, que atende mais de 7.000 pessoas, vive hoje à espera da votação de um recurso no mesmo tribunal onde triunfou a AbraRio, mas que por mais de duas vezes negou que ela operasse por fora das diretrizes da 327. Agora, porém, caso exista justiça e coerência por parte do TRF-2, eles convocarão a Apepi para propor a unificação das decisões, deixando, assim, que os milhares de pacientes durmam em paz, sem a ameaça de não haver mais tratamento ao acordarem.

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