Este artigo foi publicado originalmente em inglês no Center for European Policy Analysis (CEPA)
Por Irina Borogan e Andrei Soldatov
Enquanto o governo norte-americano busca um acordo com Vladimir Putin, os especialistas em espionagem de Moscou voltam sua atenção para o confronto com seus dois principais adversários na Europa: as agências de inteligência britânica e francesa, embora por motivos diferentes.
Os mandarins da inteligência russa sempre foram obcecados pelos britânicos, considerando-os muito superiores em espionagem do que os americanos, e a Guerra Fria não afetou realmente esse julgamento.
Afinal, os britânicos são a única agência de inteligência já acusada de tramar diretamente a derrubada do regime em Moscou (à parte a relação de Vladimir Lenin com os alemães durante a Primeira Guerra Mundial, ainda um constrangimento para a narrativa histórica oficial). Para um Kremlin paranoico, pouco importa que essa tentativa tenha ocorrido há mais de cem anos, logo após a Revolução Russa de 1917.
Os britânicos realizaram uma operação de inteligência significativa na Rússia pós-revolucionária, inicialmente para apoiar e observar seu aliado de guerra e, por fim, para subverter o regime bolchevique e seus apelos por uma revolução global.
R. H. Bruce Lockhart, então cônsul-geral britânico em Moscou, foi acusado de desviar grandes somas de rublos para as tropas letãs (a guarda pretoriana de Lenin) na tentativa de encenar um golpe de Estado antibolchevique em 1918, com a ajuda do renomado espião Sidney Reilly. Bruce Lockhart foi preso pela Cheka, acusado de planejar o assassinato de líderes bolcheviques, e posteriormente trocado por Maxim Litvinov, que havia sido mantido em uma prisão britânica e se tornaria ministro das Relações Exteriores soviético sob Stalin. Reilly foi enganado e voltou para a Rússia, onde acabou capturado e executado.
Desde “a conspiração Lockhart”, as agências de espionagem de Moscou tratam os espiões britânicos com uma mistura de medo e admiração. De certa forma, tornou-se uma relação de amor e ódio que ia muito além da lógica operacional.

Na década de 1960, quando os espiões de Moscou se aventuraram pela primeira vez na publicidade e começaram a patrocinar diretamente filmes de espionagem, como Temporada Morta (em tradução literal, do original “Myortvyy Sezon”), feito em 1968. Foram os filmes britânicos que eles imitaram, e os espiões britânicos foram escalados como o principal inimigo da KGB.
O principal atrativo do filme era a atmosfera. Filmado em preto e branco contra um fundo cinza (um pouco como o filme britânico “O Espião que Veio do Frio”, de 1965), homens na faixa dos 40 e 50 anos, vestidos com capas de chuva cinza e pretas, falam em voz baixa e fazem muito pouco. As cenas de ação começam apenas no final.
A trama gira em torno da duplicidade e do cinismo de uma potência inimiga sem nome (os britânicos nunca são explicitamente nomeados, mas todos os indícios apontam para o Reino Unido). Seu comportamento é profundamente cínico e perigoso — o inimigo emprega um criminoso de guerra nazista procurado para continuar sua pesquisa sobre a criação de uma arma neuroquímica. O principal consultor do filme era Konon Molody, um agente ilegal da KGB (ou seja, um espião sem credenciamento diplomático) que havia trabalhado no Reino Unido disfarçado de empresário canadense até ser preso e posteriormente trocado.
O filme foi um sucesso instantâneo, com 35 milhões de soviéticos assistindo. Teve um impacto enorme e duradouro na base da KGB: Putin certa vez admitiu que o filme o inspirou a ingressar no serviço de segurança.
Os serviços de espionagem soviéticos também incentivaram a publicação de obras impressas para a guerra de propaganda. A década de 1960 viu uma infinidade de livros publicados e, novamente, o principal esforço da KGB foi direcionado ao Reino Unido. Moscou patrocinou a publicação de livros escritos pelos traidores da espionagem britânica Kim Philby e Donald Maclean, membros do chamado Cambridge Five (embora, curiosamente, apenas o livro de Philby tenha sido traduzido para o russo).
Nas décadas de 1970 e 1980, Kim Philby era tratado com admiração, beirando a idolatria, pelos agentes de inteligência da KGB prestes a serem enviados ao Reino Unido. Como parte do programa de treinamento, ele os instruía sobre como era ser britânico. E, de fato, os jovens agentes da KGB passaram a imitar os hábitos e maneirismos de Philby.
Após o colapso da União Soviética, muitos desses oficiais — ainda servindo no que ficou conhecido como Serviço de Inteligência Estrangeiro (SVR) — organizaram um “clube inglês” informal, sediado em uma mansão azul e branca na Kolpachny Lane, no centro de Moscou, que também abrigava o centro de imprensa do SVR. O círculo incluía Yuri Kobaladze, chefe da assessoria de imprensa do SVR, e Mikhail Lyubimov, um veterano da KGB que se tornou escritor de romances de espionagem, ambos os quais serviram em Londres durante a Guerra Fria.
Coincidentemente, alguns desses admiradores de Philby passaram alguns anos no departamento de desinformação da inteligência russa — o departamento não apenas envolvido em “medidas ativas” em todo o mundo, mas também em grande parte responsável por redefinir a imagem do SVR após o colapso da União Soviética. Nesse esforço, os espiões russos foram apresentados como mais refinados, cultos, cosmopolitas e até liberais, em contraste com os brutais agentes da KGB que serviram dentro do país. Essa reformulação de marca altamente bem-sucedida ajudou a proteger o SVR das reformas da década de 1990.
Os mestres da espionagem de Moscou passaram a acreditar que os britânicos eram inigualáveis na manipulação de seus inimigos e aliados. Vitaly Shlykov, chefe do departamento de inteligência econômica da inteligência militar soviética sob Gorbachev, certa vez contou aos autores, com franca admiração, como leu sobre a Coordenação de Segurança Britânica (BSC) — um braço da inteligência britânica nos EUA durante a Segunda Guerra Mundial — enquanto estava detido em uma prisão suíça na década de 1980 como um membro ilegal do GRU (serviço de inteligência militar russo) exposto. Shlykov acreditava que a BSC havia efetivamente manipulado o governo americano tanto durante a guerra quanto muito depois.
Ele não estava sozinho em suas convicções. Dentro do regime de Putin, as suspeitas sobre a desonestidade britânica só aumentaram. Já em 2007, o First Channel, o principal canal de TV do país, exibiu a série “O Grande Jogo” (que retrata as contínuas conspirações britânicas contra a Rússia), criada por Mikhail Leontyev, um dos propagandistas russos mais próximos de Putin.
A principal mensagem da série era a de que a Guerra Fria não começou em 1949 e não terminou em 1991, com os britânicos mais uma vez identificados como o principal adversário. A série foi exibida novamente em 2008 — logo após a guerra russa na Geórgia — e novamente em março de 2022, após a invasão em larga escala da Ucrânia. O apoio britânico declarado à Ucrânia na guerra apenas alimentou a paranoia de Moscou: as forças especiais russas também suspeitavam há anos que a unidade de elite do Exército britânico, o SAS (Serviço Aéreo Especial, da sigla em inglês), estava envolvida no conflito (aparentemente com alguma razão ).
A França se viu na mira russa por um conjunto diferente de razões. Desde 2022, cresce em Moscou a crença de que a França foi designada pela comunidade de inteligência ocidental para atrair desertores e traidores para o Ocidente — um pecado mortal aos olhos do Kremlin, visto que Moscou sempre foi paranoica com a ameaça de soldados, espiões e diplomatas russos mudarem de lado. E, de fato, ao longo do século XX, a Rússia produziu um número extraordinário de desertores.
Essas suspeitas se intensificaram ainda mais quando, em 2023, a França tomou a notável decisão de acolher desertores militares russos. O Tribunal Nacional de Asilo francês concedeu refúgio a 19 homens em julho de 2023. O tribunal adotou uma doutrina segundo a qual cidadãos russos receberiam o status de refugiados se pudessem “comprovar que correm risco pessoal de perseguição caso retornem à Rússia devido ao seu descumprimento da mobilização parcial no contexto da guerra travada pelas Forças Armadas russas contra a Ucrânia”.
Em outubro, seis soldados russos que haviam fugido do campo de batalha na Ucrânia ou não queriam participar da guerra chegaram à França vindos do Cazaquistão sem documentos de viagem ou passaportes estrangeiros. Eles receberam autorização de entrada para buscar asilo político na França, o primeiro caso importante de um grupo de desertores admitido em um país europeu. Naquela época, ativistas de direitos humanos contabilizaram mais de dois mil soldados russos que haviam fugido para o exterior.
Moscou também se tornou cada vez mais paranoica quanto ao possível envolvimento direto dos militares franceses na guerra. Em janeiro de 2024, quando a cidade de Kharkiv, no leste da Ucrânia, foi atingida por um ataque com mísseis que matou dezenas de pessoas, agências de notícias russas alegaram que o ataque tinha como alvo um grupo de mercenários franceses que lutavam do lado ucraniano (a alegação foi imediatamente rejeitada pelos franceses).
As suspeitas do Kremlin só aumentarão com os eventos dos últimos meses. França e Reino Unido se ofereceram para formar a espinha dorsal de uma força militar liderada pela Europa na Ucrânia como parte de um acordo de cessar-fogo — uma perspectiva que sempre foi o maior pesadelo do Kremlin.
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