Hungria ameaça suspender cidadania para silenciar a dissidência

Este artigo foi publicado originalmente em inglês no site Politico

Por David Koranyi

Nunca pensei que veria o dia em que a Hungria — meu país natal — ameaçaria suspender minha cidadania pelo ato de defender a democracia.

Mas aqui estamos.

Na semana passada, o partido Fidesz, no poder na Hungria, adotou um projeto de lei que permitiria ao governo retirar temporariamente os passaportes húngaros de cidadãos com dupla nacionalidade — especialmente aqueles que também são cidadãos de países não pertencentes à União Europeia (UE) ou ao Espaço Econômico Europeu — caso sejam considerados como tendo agido “no interesse de potências estrangeiras” e “prejudicado a soberania da Hungria”.

As ambições deste projeto de lei são claras como o dia. Não se trata de segurança nacional; trata-se de silenciar a dissidência. Trata-se de atingir a sociedade civil, jornalistas e ativistas — tanto na Hungria quanto na diáspora — que se recusam a se alinhar ao primeiro-ministro Viktor Orbán.

Já fui alvo de muitos ataques desse tipo. Meu nome e minha organização, Ação pela Democracia, são objetos de propaganda do governo húngaro há anos.

O governo ordenou vigilância ilegal, gravando secretamente vídeos e tirando fotos de mim e da minha família em frente ao nosso apartamento em Nova York. Publicou alegações infundadas em jornais pró-governo. Lançou ataques misóginos contra minha esposa. E instruiu as agências de inteligência húngaras, bem como a orwelliana “Autoridade de Proteção da Soberania” — um órgão inspirado na máquina estatal repressiva do presidente russo Vladimir Putin — a investigar minha organização sob a alegação de “segurança nacional”.

Agora, ele quer o poder legal para apagar pessoas como eu da alma e do corpo da nação.

Orbán na sede do Conselho Europeu, em Bruxelas, outubro de 2023 (Foto: consilium.europa.eu)

Já vimos essa tática antes, em Estados autoritários como Rússia, China e Irã. Mas, se essa lei for aprovada, a Hungria se tornará o único membro da UE que poderá revogar a cidadania com base em alegações vagas e subjetivas de deslealdade. Isso enviaria uma mensagem assustadora a dezenas de milhares de cidadãos naturalizados, com dupla nacionalidade e húngaros da diáspora: fiquem quietos ou perderão sua nacionalidade.

Este não é um ato isolado. Pelo contrário, faz parte de um manual autoritário mais amplo — que trata a democracia, a sociedade civil e a liberdade de expressão como ameaças a serem neutralizadas. Por exemplo, na semana passada, o regime também alterou a constituição — pela 15ª vez em tantos anos — para limitar severamente a liberdade dos cidadãos de protestar pacificamente, intensificando sua campanha contra as comunidades LGBT+ ao proibir efetivamente as paradas do orgulho gay. Aproveitando uma “Lei de Proteção à Criança” profundamente problemática, o regime agora tem carta branca para criminalizar assembleias que considere inapropriadas e usar tecnologias de vigilância invasivas, como o reconhecimento facial, para sua aplicação.

Isso estabelece um precedente assustador, já que a liberdade de reunião — uma pedra angular da democracia — agora pode ser suspensa indefinidamente para silenciar a oposição política.

Isso também se segue a uma série de acontecimentos mais amplos, que indicam um padrão de rejeição às normas internacionais — particularmente no que diz respeito aos direitos humanos. Por exemplo, durante uma visita do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu no início deste mês, Orbán declarou sua intenção de retirar a Hungria do Tribunal Penal Internacional (TPI), do qual é membro fundador.

A medida foi aparentemente em apoio a Netanyahu, que está sujeito a um mandado de prisão do TPI por supostos crimes de guerra. E, embora esse acontecimento não seja nenhuma surpresa, fornece evidências significativas de que Orbán está disposto a priorizar a conveniência política em detrimento da justiça e que seu governo considera o direito internacional opcional quando entra em conflito com alianças políticas.

Tudo isso pode causar problemas à medida que nos aproximamos das próximas eleições na Hungria, programadas para abril de 2026.

Apesar de ter conquistado grande parte do Estado nos últimos 15 anos, Orbán está atualmente atrás do oponente Péter Magyar, que lançou uma campanha para “desintoxicar” o sistema político húngaro e erradicar a corrupção. Anteriormente membro da família Fidesz, as críticas justificadamente duras de Magyar ao regime de Orbán resultaram, sem surpresa, no tipo de ataques e campanhas de difamação orquestradas pelo Estado que venho suportando há anos. E, mais preocupante, agora há rumores de que Orbán pode tentar prendê-lo ou impedi-lo de disputar as eleições.

Vindo de uma administração cada vez mais desesperada e paranoica, tudo isso visa atingir os direitos dos cidadãos, a justiça internacional e as normas democráticas. E, para os leitores europeus, devo alertar: não se trata de um problema exclusivamente húngaro. Se um país-membro puder privar seus cidadãos de seus direitos, proibir a expressão pública e desrespeitar obrigações internacionais sem consequências, todo o projeto europeu estará em risco.

O bloco não pode mais se dar ao luxo de continuar com sua estratégia de meias-medidas e advertências. Orbán provou, repetidas vezes, que só responde à pressão. Ele também falou abertamente sobre “destruir” a UE por dentro e, acredite, ele leva essa ambição a sério.

Assim, a Comissão Europeia deve, sem demora, instaurar processos contra às novas leis, visto que estas contradizem claramente os tratados da UE. O bloco também deve redirecionar os fundos suspensos, da melhor forma possível, para os municípios húngaros, organizações da sociedade civil e meios de comunicação independentes, atualizando o instrumento de condicionalidade existente para permitir a realocação de fundos e garantir que o dinheiro dos contribuintes europeus não encha os bolsos do governo autoritário. E, por último, mas não menos importante, é chegada a hora de a UE reconsiderar fundamentalmente a forma como lida com governos que rotineiramente minam os seus valores.

Como cidadão húngaro, europeu e americano, não me deixarei intimidar — nem a minha organização. Continuaremos a apoiar a sociedade civil na Hungria e em outros países em conflito que lutam por liberdade e justiça em todo o mundo. Mobilizaremos as comunidades da diáspora. Combateremos a desinformação, a repressão e o medo, porque a democracia não é apenas um sistema, é uma promessa.

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