Imagine assistir, em uma sessão única, a um filme brasileiro de 1918, dado como perdido por mais de um século, que retrata a Amazônia, seus rios, florestas e povos, exatamente onde você está agora. Mais surpreendente ainda: o filme, intitulado “Amazonas, o Maior Rio do Mundo”, dirigido pelo pioneiro Silvino Santos, não é apenas uma relíquia do cinema mudo, mas um espelho das belezas e contradições de uma região que, 107 anos depois, ainda enfrenta os mesmos desafios.
Essa experiência, descrita como “um portal para um passado vivo”, foi vivida por espectadores no Teatro Amazonas, em Manaus, no dia 29 de dezembro de 2023, quando a obra ressurgiu após décadas de esquecimento. A história de sua redescoberta e seu impacto é narrada pelo jornalista Renildo Rodrigues, formado pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
Produzido em 1918 por Silvino Santos, um cineasta português que andou por Belém, onde tinha negócios, mas passou a maior parte de sua vida em Manaus, o filme “Amazonas, o Maior Rio do Mundo” foi encomendado pela Amazônia Cine-Film, uma iniciativa do governo estadual e empresários locais para promover as riquezas da região.
Com 67 minutos, o filme (veja a íntegra, abaixo) é uma peça publicitária que exibe paisagens exuberantes, atividades econômicas como a extração de borracha e a coleta de castanha, e cenas de indígenas e trabalhadores, embaladas como uma aventura exótica para atrair investidores e suas famílias. Após estrear com sucesso no Brasil, a obra foi levada à Europa, onde perdeu o nome de seu criador. Rebatizada como “As Maravilhas do Amazonas” e com letreiros em tcheco, circulou em cópias não autorizadas até desaparecer na década de 1930.
Por um golpe de sorte, uma dessas cópias sobreviveu, preservada na Cinemateca de Praga, na República Tcheca. A redescoberta, em 2023, foi resultado do trabalho incansável de pesquisadores amazonenses, como Selda Vale da Costa, autora do livro “Eldorado das Ilusões”, e Sávio Stoco, doutor com estudos dedicados a Silvino Santos. Alertada por um festival de cinema mudo em Praga, a equipe confirmou que o filme, em excelente estado, era a obra perdida. “É como encontrar um tesouro enterrado na floresta”, compara Rodrigues. Sem menção a Santos, o filme traz apenas letreiros em tcheco, mas suas imagens falam por si.
Igapós, indígenas, a borracha
As cenas capturam a Amazônia de 1918 com uma clareza impressionante: rios intermináveis, igapós densos, danças rituais em aldeias indígenas, o trabalho árduo na extração de borracha e a movimentação comercial em cidades como Manaus, Belém, Santarém, Itacoatiara e até Putumayo, no Peru. No entanto, o filme não é um documentário puro. Seus letreiros, muitas vezes superficiais, destacam o exotismo (“não é recomendável tomar banho aqui”, antes de mostrar jacarés) ou as riquezas locais (“Manaus é o centro da indústria madeireira”).
Os planos, quase sempre estáticos, lembram fotografias animadas, longe do dinamismo de produções da época, como “O Nascimento de uma Nação” (1915).
Ainda assim, o valor de “Amazonas” está nas imagens e no que revelam hoje. “É um filme feito para as elites, mas quem brilha são os trabalhadores e indígenas, captados em suas lutas diárias”, observa Rodrigues. Cenas de barqueiros, coletores de castanha e caçadores de peixe-boi, muitas vezes apresentados como “selvagens” pelos letreiros, mostram a força humana por trás da economia amazônica.
Uma sequência marcante exibe trabalhadores carregando um navio com castanhas, enquanto dois homens ricos, em ternos brancos, sorriem no convés – uma metáfora das desigualdades que persistem na região.
Peso trágico
O filme também carrega um peso trágico. Criado para vender a Amazônia como terra de prosperidade, ele hoje soa como um alerta sobre a exploração desenfreada. “Silvino filmou a floresta intocada e os povos que a habitavam, mas, um século depois, vemos o desmatamento e a marginalização desses mesmos povos”, reflete Rodrigues. A obra, comparada por ele a “Os Sertões” de Euclides da Cunha, revela “a terra, o homem e a luta” de uma Amazônia à margem da história.
A exibição no Teatro Amazonas, onde o Largo de São Sebastião aparece quase deserto no filme, foi um momento de catarse. “Ver o passado da sua cidade na tela, sabendo que esse filme quase se perdeu para sempre, é indizível”, diz Rodrigues. A redescoberta de “Amazonas, o Maior Rio do Mundo” não é apenas um marco para o cinema brasileiro, mas um convite à reflexão sobre o que a Amazônia foi, é e pode ser. Como destaca o jornalista, “essas imagens nos lembram que a história da Amazônia não pode ser esquecida – nem negligenciada novamente”.
Fonte: Renildo Rodrigues, jornalista formado pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
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