Na timeline de qualquer torcedor de boi, o feed não é neutro. Um post azul é sinal de guerra para quem veste o vermelho. Um termo mal colocado pode incendiar uma discussão.
No universo das redes sociais, a tradicional rivalidade entre Caprichoso e Garantido ganhou um novo território: o digital. E nele, a paixão pelo Festival Folclórico de Parintins pulsa como nunca: alimentada por memes, vídeos, hashtags e, claro, embates acalorados (tretas).
Essa disputa, que atravessa gerações e cores, agora se molda ao comportamento de uma cultura digital conhecida como stan culture, um fenômeno global que redefine o jeito de ser fã na era das redes sociais.
O termo nasceu da música “Stan”, lançada por Eminem em 2000, que contava a história de um fã obsessivo e perigoso.

O que é stan culture?
No início, a palavra carregava um tom negativo, associada a comportamentos extremos, quase como de um stalker.
Com o tempo, porém, stan foi ressignificado e passou a representar o “super fã”: alguém extremamente engajado, apaixonado, e, muitas vezes, ligeiramente mais devotado do que o fã médio.
As redes sociais viraram o habitat natural desses fãs. Lá, criam-se laços, comunidades, campanhas, mas também rivalidades. O senso de pertencimento é tão forte que, muitas vezes, críticas ao ídolo são tratadas como ofensas pessoais.
Esse lado sombrio da stan culture aparece no assédio online, no bullying virtual e até no doxing, que seria a divulgação de dados pessoais de quem “ousa” discordar.
Grupos de fãs, ou standoms, defendem seus artistas, times e bois com intensidade e, por vezes, agressividade, deixando pouco espaço para o bom senso ou para o contraditório.
Entre exemplos como os fãs de Taylor Swift, BTS, Beyoncé ou Ariana Grande, está também a torcida dos bois de Parintins, que, apesar de suas raízes locais e culturais, compartilha do mesmo fervor digital.

A rivalidade entre Caprichoso e Garantido, antes restrita à arena do Bumbódromo e aos bairros da cidade, agora pulsa nas redes, onde ganha novos contornos e escala.
A internet não apenas ampliou a voz dos torcedores, como também reforçou identidades, fortaleceu comunidades e, em muitos casos, intensificou a disputa.
A rivalidade na perspectiva da era digital
Agora, o embate entre Garantido e Caprichoso ganhou uma nova arena: os comentários, stories e threads.
Para Gilmar Filho e Lucas Oliveira, administradores da página “Cabloco Perreché” e embaixador do Norte Bumbás, o fanatismo digital tem dois lados.

“Muita coisa está dentro do limite de exaltar, divulgar o seu boi, tirar sarro e desafiar o contrário. Mas uma parte se comporta de forma criminosa, contando mentiras, lançando fake news e agindo com intolerância”, criticam os torcedores perrechés.
Gilmar, que acompanha o Festival há mais de 10 anos também pela tela do celular, reconhece que já esteve imerso nessa lógica — mesmo que involuntariamente.
“Em algum momento devo ter entrado nessa lógica. Quanto mais experiência vivida, menos radical o torcedor é”, pontuou.
Do outro lado do espectro, a nação azulada também se manifesta nas redes com fervor. A influencer Andrezza Lira e embaixadora do Norte Bumbás — que ainda sonha em conhecer Parintins presencialmente — observa o crescimento das torcidas digitais com cautela.
“As torcidas parecem até torcidas organizadas de futebol. Vi um grande crescimento de perfis e páginas de memes nesse embate Caprichoso e Garantido”, relata.
Para ela, há exageros, especialmente quando a rivalidade extrapola o festival. “Tem gente que leva isso pra vida, como se fosse política. Chega a ser perigoso”, opinou.

“As torcidas parecem até torcidas organizadas de futebol. Vi um grande crescimento de perfis e páginas de memes nesse embate Caprichoso e Garantido. Tem gente que leva isso pra vida, como se fosse política. Chega a ser perigoso”, opinou a torcedora azulada.
Ambos os entrevistados concordam que existe uma linha tênue entre paixão e intolerância. Comentários ofensivos, xingamentos e até ataques pessoais são comuns — e muitas vezes motivados por postagens aparentemente inofensivas.
“Já sofri ataques por afirmar coisas sobre o outro boi como figura conjunta”, relatou o perreché. Já a torcedora azulada diz que, embora ainda não tenha sido “cancelada”, já foi duramente atacada. ”Fui bem xingada por defender o meu boi inclusive xingaram até o meu boi”, contou.
Apesar das tensões, os dois torcedores reconhecem o valor das redes sociais na amplificação da cultura bovina.
Contudo, Gilmar alerta para o lado perigoso do fanatismo digital, que pode chegar a gerar gatilhos, sintomas emocionais. “A parte criminosa é realmente perigosa”, disse.
Além disso, as páginas dedicadas ao festival, que deveriam ser espaços de celebração da cultura e da arte, muitas vezes tornam-se arenas de rivalidade tóxica.
“Tem página que diz ser imparcial, mas faz um desserviço. Se for falar bem do seu boi e sujar a imagem do contrário, então não se proponha a ser digital influencer bovino”, desabafa o torcedor da do boi vermelho e branco.
Paus e estacas: a rivalidade antes do digital
Engana-se quem pensa que a rivalidade entre os bois Caprichoso e Garantido é um fenômeno dos tempos modernos. Esse espírito competitivo é cultivado desde os primórdios do Festival de Parintins, quando a celebração ainda servia como uma forma de arrecadar fundos para a construção da Catedral de Nossa Senhora do Carmo.
Mais do que um simples confronto dentro da arena do Bumbódromo, a rivalidade é a verdadeira força motriz que mantém viva a tradição do Festival de Parintins, que não morre no tempo e que se renova ano após ano.

A brincadeira, que hoje ganha novos contornos na modernidade, nasce no berço poético das famílias Monteverde (Garantido) e Cid (Caprichoso). Segundo a história, conta de avô para neto, os grupos rivais “nascem” no ano de 1913, como herança nordestina.
São mais de 100 anos de história, evoluindo de uma festa de ciranda na frente da Catedral de Nossa Senhora do Carmo para o imponente Bumbódromo. O tempo não foi capaz de apagar a tradição, mas a fez andar com os anos, se atualizando a cada década.
Com a rivalidade não foi diferente. Ela começou de forma tímida, ganhando força ao longo dos anos, passando por períodos mais calmos e outros mais intensos. Atualmente ganha um novo formato, deixando as ruas e festas para também estar presente no mundo digital.
Mas será que hoje em dia ela ultrapassou os limites da tradição?
Tradição do confronto: histórias dos Monteverde e Cid
Neto de Lindolfo Monteverde, fundador do Boi Garantido, Dé Monteverde afirma que vive o Festival de Parintins na veia e que o acompanha — bem como a rivalidade — desde que nasceu.

O herdeiro do “Boi do Povão” acha que as “tretas bovinas” nas redes sociais não tem influência concreta no Festival de Parintins. Em memória, ele volta no tempo e descreve uma rivalidade de décadas atrás, intensa e “cara a cara”.
A agressividade das redes sociais, na sua visão, é uma versão reformulada — e até suavizada — do que acontecia há alguns bons anos. Em uma linha do tempo que se remonta a décadas atrás, a rivalidade era resolvida com paus, fogo e pancadaria.

“Nesse tempo de juventude, estávamos com uns parentes meus sentados na calçada, quando ouvimos um alarido. Era um torcedor ousado do contrário exibindo uma bandeira enorme, querendo passar por nosso curral”, conta Dé Monteverde, neto do fundador e membro da comissão de arte do Boi Garantido.
“Nós nos levantamos rápido, nos mobilizamos, puxamos a bandeira e queimamos lá mesmo (…) Assim acontecia também lá se algum torcedor do Garantido ousasse passar com a bandeira do nosso boi”, disse Dé.
Nessa época a confusão era grande entre os torcedores, que já ficam avisados: se tivesse pancadaria, o delegado da cidade mandava caçar os bois de pano para que virassem cinzas, tomados por fogo.
Em um dos casos, uma confraternização terminou em briga. O delegado cumpriu sua promessa, mas o Boi Garantido consegui escapar, deixando apenas o Boi Caprichoso preso e queimado.

Dé Monteverde afirma que a rivalidade no ciberespaço se sustenta em narrativas, que buscam curtidas e monetizações. Além disso, ressalta que tudo ocorre em tempo real e que pautas pequenas ganham grandes projeções.
Na visão de Peta Cid, representante da família fundadora do Boi Caprichoso, a rivalidade é o diferencial do Festival de Parintins. Ela afirma que “a disputa sempre foi intensa” e que precisou amenizar para assumir um tom comercial.

“Minha mãe foi várias vezes ameaçada com notícias que iriam queimar nossa casa, coberta de palha. Lá em casa eram feitas as fantasias e isso chamava a atenção”, disse Peta Cid, representante da família fundadora do Boi Caprichoso.
Na década de 70, a jornalista lembra que sua mãe, mestre Ednelza Cid, transformava sua casa em “QG do Caprichoso”, atraindo os olhares dos adversários.
Além disso, lembra de um episódio específico em 1977, quando o Caprichoso foi bicampeão. Após o resultado, houve confronto entre os torcedores rivais, deixando pessoas feridas e internadas.

“Os integrantes do Garantido ameaçaram invadir nossa casa e formos pedir abrigo na Casa das Irmãs da Caridade. O Garantido saiu quebrando todas as castanholeiras da Avenida Amazonas. Nós ficamos na casa das freiras até tudo se acalmar”, relembrou.
Apesar disso, ressalta que com o tempo as coisas ficaram mais pacíficas. Peta, que é jornalista e Conselheira de Arte no Caprichoso, diz que os receios ficaram no passado.
“Hoje, como repórter, já fiz coberturas de vários festivais, entrevistas com personagens do boi Garantido e sempre fui respeitada”, disse.

A herdeira do Touro Negro descreve uma rivalidade acirrada, mas que “quando acabava o festival, as pessoas se encontravam normalmente”. O conflito era de “boi para boi. Nada era pessoal”.
Ela enxerga o embate na internet com a toxicidade característica dos tempos modernos, alegando que “não é só no boi”, mas sim, geral. Peta Cid destaca os impactos das notícias falsas no contorno da rivalidade.
“As pessoas se escondem atrás de um perfil e ofendem, ameaçam, desrespeitam. E a rivalidade ganhou todos esses componentes e as pessoas que não conhecem e nem viveram a singeleza da brincadeira de boi”, disse.
Como os bois veem a rivalidade no presente?
A Comissão de Artes do Boi Garantido, que preferiu assinar em conjunto, enxerga a rivalidae atual como uma “atualização” das manifestações antigas. Na perspectiva do grupo, a rivalidade não se acentou, apenas migrou para o meio digital.

“Aquela rivalidade que antes era vivida nas calçadas, nos bares, nos versos dos amos e nas piadas entre torcedores, agora também aparece nas redes sociais. Não é algo novo ou estranho, apenas mudou de ambiente”, declarou a Comissão de Artes do Boi Garantido.
“O Festival de Parintins é um verdadeiro exemplo de civilidade. Apesar de toda a rivalidade entre Garantido e contrário, essa disputa ocorre dentro de regras bem definidas, que proíbem agressões físicas e estabelecem limites até mesmo para as agressões morais”, alegam.
Diante das crescentes críticas sobre o comportamento dos torcedores nas redes sociais, a agremissão afirma que, na verdade, “o que se observa é um espírito de brincadeira e de respeito mútuo”.
Por outro lado, se preocupam com as dimensões nas redes sociais, uma vez que “muitas vezes não sabemos que está por trás” das telas.
Ericky Nakanome, presidente do Conselho de Artes do Boi Caprichoso, compartilha do mesmo posicionamento. Ele ressalta que a “rivalidade ainda existe”, a rivalidade que faz “cada boi querer se apresentar melhor que o outro”.

“A rivalidade ainda existe e faz cada boi querer se apresentar melhor que o outro”, disse Ericky Nakanome, presidente do Conselho de Artes do Boi Caprichoso.
O membro interno da agremiação ainda ressalta que a rivalidade é alimentada pelos próprios bois por meio de falas, por meio de versos e por meio de uma série de linguagens, seja falada ou publicada, reforçando o contexto cibernético.
Os contextos do passado e do presente revelam que a rivalidade, antes física, passou por um período de enfraquecimento para se tornar comerciável. Agora, o sentimento assume um novo espaço — a internet — e vem, novamente, crescendo.
Os bumbás tem interesse em frear ou tudo faz parte do jogo? Até o momento, não uma conversa entre a Comissão e o Conselho sobre o tema, segundo o Ericky Nakanome.
Quando questionados se há diálogo entre os grupos, apenas o presidente do Coselho de Artes do Boi Caprichoso demonstrou interesse em responder.
“Não existe diálogo entre as comissões e as direções do Boi; há diálogos entre os presidentes, mas, pela sobrecarga de demandas que o universo digital impõe, os próprios presidentes já não têm condições de viver o Boi no seu dia a dia, pois precisam atender patrocinadores e tantas outras demandas que surgem a partir desse universo digital”, disse Nakanome.
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