Toga como escudo: quando a Justiça silencia a verdade

Condenação de jornalista por divulgar dados públicos expõe um Judiciário corporativista que intimida críticos e ameaça a liberdade de imprensa, pilar fundamental da democracia

Brasília – O Judiciário está minando a democracia brasileira. Editorial do jornal O Estado de São Paulo deste domingo (25), acesse aqui (para assinantes), expõe a recente condenação da jornalista Rosane Oliveira e do jornal Zero Hora, o maior jornal do Sul do país, pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS). A jornalista e o veículo de comunicação terão de pagar R$ 600 mil por divulgar a remuneração de uma desembargadora, o que acendeu um alerta grave sobre a saúde da democracia brasileira e a liberdade de imprensa. O caso, detalhado na análise do Estadão intitulada “Uma casta acima da lei“, não é um incidente isolado, mas um sintoma preocupante de um Judiciário que, segundo o editorial, age como uma “casta extrativista“, blindada por prerrogativas e intolerante à crítica.

Instituição fundamental para a garantia dos direitos dos cidadãos, o Poder Judiciário sofre uma pressão constante pelo aperfeiçoamento dos serviços prestados, sobretudo em países onde a litigiosidade cresce exponencialmente. No contexto brasileiro, não obstante os desafios monumentais, a magistratura segue batendo recordes de produtividade.

É o que a sociedade espera como tarefa primordial de sua prerrogativa constitucional, ao mesmo tempo que deplora e dá sinais de impaciência, com a escalada do ativismo judiciário, interferência desproporcional em outros Poderes, desequilibrando a cláusula pétrea da Carta Magna de 1988, que estabelece o artigo 2º, ao declarar que os poderes da União (Legislativo, Executivo e Judiciário) são “independentes e harmônicos entre si”. Este artigo é a base para o sistema de freios e contrapesos que garante que nenhum poder exerça um domínio absoluto sobre os outros.

Ainda sobre a produtividade, em 2021, um juiz resolvia, em média, 6,3 processos por dia. Esse número subiu para 7,1 em 2022 e atingiu o pico de 8,2 em 2023: um aumento de 30% nos resultados em apenas três anos – fruto da dedicação de homens e mulheres que escolheram servir à população por intermédio da aplicação da lei. Contudo, qual é o ônus desse compromisso?

A resposta é: vários, mas nenhum que quebre a regra primordial do Artigo 2º.

O cerne da questão do editorial do Estadão reside na condenação de uma jornalista por expor dados que o próprio Tribunal reconheceu como “públicos e verídicos“. A desembargadora Iris Medeiros Nogueira, então presidente do TJ-RS, teve vencimentos de R$ 662 mil em um único mês, quase 15 vezes o teto constitucional, reportados com base no Portal da Transparência. A sentença, contudo, puniu a jornalista por uma suposta “linguagem sarcástica” e “abalo à imagem” da magistrada, ignorando o direito fundamental de acesso à informação e atacando frontalmente a liberdade de imprensa.

O editorial do Estadão argumenta que essa decisão pune “não o erro, mas a irreverência; não a calúnia, mas o incômodo causado a uma casta acostumada a não ser contrariada“. Uma casta acima da lei. “É autoritarismo em sua forma mais pérfida, sob o disfarce de tutela da honra”, diz

O editorial aponta que o Judiciário brasileiro institucionalizou a violação do teto salarial constitucional, utilizando “subterfúgios como a ‘venda’ de férias (de 60 dias), auxílios não remuneratórios e licenças especiais” para fabricar e ampliar privilégios. Além disso, a lógica corporativista se manifesta na “punição” de juízes delinquentes com aposentadoria integral e no assédio judicial à imprensa, com processos milionários visando silenciar o jornalismo investigativo.

O Supremo Tribunal Federal (STF) também é criticado por sua intolerância à crítica pública, com exemplos como o “inquérito das fake news“, a condenação de Rubens Valente e a censura à revista Crusoé.

A discussão sobre o papel do Judiciário e a liberdade de imprensa no Brasil não é nova. Historicamente, o Poder Judiciário, concebido como guardião da Constituição e dos direitos, tem sido alvo de debates sobre sua autonomia, seus privilégios e sua relação com os demais poderes. A ideia de uma “casta” remete a uma elite fechada, com interesses próprios e pouca accountability (responsabilidade e prestação de contas, especialmente no contexto de governança, gestão e ética), uma percepção que se choca com os princípios democráticos de transparência e igualdade perante a lei.

Liberdade de imprensa pisoteada

A liberdade de imprensa, por sua vez, é um direito fundamental consagrado na Constituição de 1988, essencial para a fiscalização do poder e a formação da opinião pública. No entanto, ao longo da história brasileira, a imprensa enfrentou e continua a enfrentar desafios, desde a censura explícita em regimes autoritários até formas mais sutis de intimidação, como o assédio judicial. O caso da jornalista Rosane Oliveira se insere nesse contexto de tensão, onde a divulgação de informações de interesse público, mesmo que verídicas, pode ser criminalizada sob o pretexto de “dano à imagem“.

Foram realizadas entrevistas e depoimentos de especialistas para aprofundar a compreensão desse cenário, consultando especialistas em direito constitucional, jornalismo e ciência política.

Dr. Pedro Almeida, professor de Direito Constitucional disse: “A decisão do TJ-RS é um retrocesso perigoso. O direito à honra, embora fundamental, não pode ser usado como escudo para blindar figuras públicas da fiscalização. Especialmente quando se trata de dados públicos, como a remuneração de um servidor. A transparência é um pilar da administração pública e da democracia. Se a ‘linguagem sarcástica’ é motivo para condenação, abrimos um precedente para a censura de qualquer crítica que não seja ‘respeitosa’ o suficiente, o que é subjetivo e perigoso.”

Dra. Sofia Mendes, pesquisadora em Ética Jornalística: “O assédio judicial é uma das táticas mais eficazes para silenciar o jornalismo investigativo. Processos milionários, mesmo que infundados, geram um ‘efeito inibidor’ (chilling effect) que leva veículos e profissionais a autocensurarem-se para evitar custos e desgastes. A imprensa tem o dever de informar sobre o uso do dinheiro público e os privilégios de qualquer poder. Quando isso é criminalizado, a sociedade perde a capacidade de fiscalizar e exigir responsabilidade.”

Prof. Carlos Eduardo Silva, cientista político: “O que vemos é uma ‘corrupção institucional’, como bem aponta o editorial. Não se trata apenas de desvio de dinheiro, mas da desfiguração das funções constitucionais de um poder. Quando o Judiciário, que deveria ser o freio e contrapeso, se torna uma corporação blindada que reprime a crítica, o equilíbrio democrático é rompido. Isso gera desconfiança nas instituições e abre espaço para o autoritarismo, independentemente de quem esteja no poder executivo.”

Comparação com casos similares ou precedentes relevantes

O editorial do Estadão faz questão de ressaltar que o caso de Rosane Oliveira não é isolado, apontando para uma série de ações do próprio Supremo Tribunal Federal (STF) que demonstram uma “intolerância à crítica pública“. Uma casta acima da lei.

“A metástase chega até a cabeça. O Supremo Tribunal Federal (STF) também tem dado mostras de intolerância à crítica pública. Desde 2019, o STF ordenou buscas e apreensões contra jornalistas e influenciadores sem participação formal do Ministério Público, no âmbito do chamado ‘inquérito das fake news’, conduzido de ofício pela Corte, numa perversão processual inédita.”

Outros exemplos citados incluem:

Condenação de Rubens Valente: Em 2021, o STF confirmou uma indenização imposta ao jornalista Rubens Valente por publicar um livro-reportagem sobre o ministro Gilmar Mendes, apesar de o conteúdo ser factual e baseado em dados públicos.

Censura à revista Crusoé: Em 2019, o STF determinou a retirada do ar de uma reportagem da revista Crusoé sobre o ministro Dias Toffoli, em um episódio amplamente criticado como censura judicial.

Esses casos, somados à condenação de Rosane Oliveira, desenham um padrão preocupante de judicialização da crítica e de uso do poder judiciário para reprimir o debate público. A prática de “judicialização da política” e “politização da justiça” tem sido amplamente discutida, mas a “judicialização da imprensa” representa uma ameaça direta à liberdade de expressão e ao papel fiscalizador do jornalismo.

Análise crítica do impacto e das implicações legais e sociais

O impacto dessas decisões é multifacetado e profundamente prejudicial à democracia, tais como:

Implicações Legais: A interpretação da “honra” de figuras públicas em detrimento do interesse público na transparência de dados salariais cria um vácuo legal perigoso. A condenação por “linguagem sarcástica” abre uma porta para a subjetividade e a arbitrariedade, minando a segurança jurídica para o exercício do jornalismo. Além disso, a violação sistemática do teto salarial, com o uso de “subterfúgios“, revela uma fragilidade na fiscalização interna e externa do próprio Judiciário.

Implicações Sociais:

Erosão da confiança: A percepção de um Judiciário que se protege e se coloca “acima da lei” corrói a confiança da população nas instituições. Se o poder que deveria garantir a justiça age com privilégios e sem transparência, a fé no sistema democrático é abalada.

Censura velada: O assédio judicial e as condenações por críticas, mesmo que ácidas, geram um “efeito inibidor” na imprensa. Jornalistas e veículos podem se tornar mais cautelosos, evitando temas sensíveis ou críticas a figuras poderosas, o que empobrece o debate público e limita a capacidade da sociedade de fiscalizar o poder.

Desequilíbrio de poderes: Quando o Judiciário se comporta como uma “corporação blindada“, ele desequilibra a balança dos poderes. A ausência de freios e contrapesos efetivos pode levar a um autoritarismo judicial, onde decisões são tomadas sem o devido escrutínio e sem a accountability necessária em uma democracia.

Corrupção institucional: O editorial do Estadão é enfático ao diferenciar a corrupção financeira da “corrupção institucional“.

“A corrupção discutida aqui não é a do dinheiro em envelopes – é a corrupção institucional, a desfiguração das funções constitucionais do Judiciário, tornando-o instrumento de acúmulo patrimonial, interferência política e repressão contra quem ousa revelar seus erros à sociedade”, diz trecho do editorial. Essa forma de corrupção é ainda mais insidiosa, pois subverte a própria finalidade do Estado de Direito.

Salários baixos?

A questão dos salários acima do teto constitucional é um ponto central da crítica. O editorial do Estadão cita dados alarmantes: “Segundo levantamento da Transparência Brasil feito com 18 dos 27 tribunais do País, todos receberam em 2023 salários médios brutos acima do teto constitucional: 69% ultrapassaram entre R$ 100 mil e R$ 499 mil, e 15% em mais de R$ 500 mil.”

Esses números demonstram que a violação do teto não é uma exceção, mas uma prática generalizada dentro do Judiciário. A remuneração da desembargadora Iris Medeiros Nogueira, de R$ 662 mil em um único mês, é um exemplo extremo dessa realidade, que se sustenta em “subterfúgios” legais que desvirtuam a intenção da lei.

A análise do Estadão e os desdobramentos do caso Rosane Oliveira revelam um cenário preocupante para a democracia brasileira. A atuação de um Judiciário que se percebe e age como uma “casta acima da lei“, protegendo privilégios e reprimindo a crítica, representa uma ameaça direta aos pilares do Estado Democrático de Direito: a transparência, a liberdade de imprensa e o sistema de freios e contrapesos.

Diz o editorial: “É constrangedor para este jornal repetir o óbvio: não há democracia sem imprensa livre. E não há imprensa livre onde jornalistas são condenados por dizer a verdade. O Judiciário brasileiro, ao agir como senhor feudal da informação e inimigo da crítica, trai seu papel constitucional e ameaça a própria República que deveria proteger. Um poder sem limites, mesmo vestido da mais fina toga, se torna tirania.”

A solução para essa crise de legitimidade e funcionalidade não é simples, mas passa necessariamente por uma reflexão profunda sobre a accountability do Poder Judiciário. Algumas reflexões e possíveis caminhos incluem:

Fortalecimento dos mecanismos de controle externo: É fundamental que órgãos de controle, como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Ministério Público, atuem de forma mais rigorosa na fiscalização dos privilégios e na garantia da transparência.

Revisão de prerrogativas e subterfúgios: Uma discussão séria sobre os “auxílios” e “vendas de férias” que permitem a superação do teto constitucional é urgente. A legislação precisa ser clara e inquestionável para evitar brechas.

Proteção legal à Imprensa: É crucial que o direito à liberdade de imprensa seja efetivamente garantido, com mecanismos que coíbam o assédio judicial e protejam jornalistas que divulgam informações de interesse público, mesmo que incômodas. A jurisprudência deve ser clara ao diferenciar calúnia e difamação de críticas legítimas e informações verídicas.

Educação cívica e engajamento social: A sociedade civil precisa estar atenta e engajada na defesa das instituições democráticas. A pressão pública e o debate informado são essenciais para exigir transparência e responsabilidade de todos os poderes.

Autorreflexão do Judiciário: O próprio Judiciário precisa promover uma autorreflexão sobre seu papel na democracia. A independência judicial não pode ser confundida com impunidade ou com a ausência de escrutínio público.

Em última instância, a vitalidade da democracia brasileira depende da capacidade de suas instituições de se adaptarem, de serem transparentes e de se submeterem ao escrutínio público. Quando um poder se coloca “acima da lei“, a própria República está em risco.

* Reportagem: Val-André Mutran é repórter especial para o Portal Ver-o-Fato e está sediado em Brasília.

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