Há cerca de duas décadas, dois arquitetos estabeleceram uma espécie de disputa saudável na preservação do acervo arquitetônico belenense.
Um, Paulo Chaves, era, então, secretário estadual da Cultura.
O outro, Edmilson Rodrigues, prefeito da capital.
Naquele período,alguns dos mais valiosos bens arquitetônicos deixados como herança para Belém, pelo seu passado secular, foram recuperadas, naquele benigno enfrentamento dos dois administradores públicos.
Todos, bens construídos na fase em que nossa cidade, nos séculos XVII e XVIII, repartiu com São Luís, a honra de sediar o gigantesco Estado do Gram-Pará/Maranhão, àquela altura, independente do Brasil, dentro do reino português.
E na fase da Belle Époque amazônica, na segunda metade do século XVIII e início do XIX, quando a região se beneficiou com a riqueza provinda da exportação de sua produção de borracha.
A beleza destes bens de Belém poderia ser apreciada por um caminhante imaginário num caminho cujo itinerário se iniciasse no Largo do Carmo e o levasse na direção do Forte do Presépio.
No largo, ele apreciaria a restituição do encanto da capela da igreja do conjunto arquitetônico dos carmelitas, na Igreja do Carmo.
Depois, ele iria caminhar pela primeira rua da cidade – a antiga Rua do Norte, atual Siqueira Mendes.
E chegaria à sua primeira edificação, o Forte do Castelo, restaurado.
No terreno do forte, escavações arqueológicas bem executadas tinham localizado milhares de fragmentos de objetos muito antigos, soterrados,com os quais foi possível montar um novo museu ali mesmo.
A partir daquele ponto, se tal caminhante descesse a Rua Padre Champagnat, em direção do Largo do Palácio, já teria visto, em boas condições, porque recuperadas,obras levantadas por outros construtores religiosos.
Como a Igreja de Santo Alexandre.
Anexa ao convento dos jesuítas, que, depois, foi usado como Palácio do Arcebispo, e, hoje, é o Museu de Arte Sacra.
Assim como teria avistado o Hospital Militar, construído por Antonio Giuseppe Landi,revitalizado com sua nova denominação de Casa das Onze Janelas.
Do outro lado do Largo do Palácio, o caminhante iria se defrontar com mais uma obra de Landi, o Palácio dos Governadores, posteriormente chamado de Palácio Lauro Sodré.
E, do lado do palácio, veria o Palacete Azul, sede do prefeito da exuberante Belle Époque amazônica, Antônio Lemos.
Paulo Chaves e Edmilson eram, ideologicamente, adversários.
Haviam se formado em períodos da História da Faculdade de Arquitetura da UFPA marcados por influências diferentes.
Pertenciam a partidos políticos concorrentes entre si.
Mas, dentro do contexto de suas pretensões políticas e das limitações partidárias, cada um, à sua maneira, se empenhou em brilhar mais que o outro, através da recuperação do maior número de obras do passado para as quais fosse possível obter recursos.
Foi neste momento único do Centro Histórico de Belém, que os gestores públicos cogitaram tomar mais uma medida.
A que beneficiaria a antiga Rua do Norte, restituindo-lhe aparência semelhante a que ela tivera no passado, por meio do aterramento das fiações elétricas e telefônicas que poluem visualmente as fachadas de suas casas.
A medida parecia perfeitamente viável, pois Belém já havia sido agraciada também com difíceis e custosas obras de revitalização.
A do Mercado do Ver-o-Peso.
A da transformação de armazéns do seu velho cais na Estação das Docas.
A da recuperação das fachadas das lojas da Rua João Alfredo, dotando a mais nobre via do comércio da Belle Époque de uma aparência cenográfica que lembrava a dos filmes de época.
Nela, até o trânsito de seu antigo bonde havia sido reimplantado.
Este outro recurso de que foi dotado o Centro Histórico podia proporcionar àquele caminhante imaginário um passeio de bonde estendido às imediações do conjunto arquitetônico de Santo Alexandre.
No entanto, desgraçadamente, o período de brilho do Centro Histórico terminou quando a tarefa de manter conservado o rico acervo arquitetônico de Belém voltou a ser confiada a inexpressivos secretários estaduais e municipais da Cultura saídos dos porões de máquinas burocráticas de partidos políticos que venceram as eleições locais seguintes.
Providências essenciais para a preservação daquela área ficaram na dependência de políticos da estirpe de um Duciomar Costa.
Cuja infindável permanência no comando da capital do Pará estará sempre marcada, na lembrança dos belenenses, pela repulsiva e despudorada exibição de fezes humanas em monumentos antigos.
No Memorial da Praça da República.
No coreto daquele belo logradouro.
Na fachada do convento franciscano.
E, inacreditavelmente, inclusive diante do próprio Palacete Azul, onde estava o gabinete dele.
Assim, o sonho de ver se iniciar na Siqueira Mendes o aterramento das fiações das ruas do nosso Centro Histórico se tornou proibido aos habitantes da cidade.
Proibição de que, felizmente, não sofreram os habitantes da outra capital do antigo Estado do Gram-Pará/Maranhão, São Luís.
Cujo centro histórico tem todas as suas ruas com fiações aterradas.
Este exemplo de cuidado permitiu à capital maranhense conquistar o título de Cidade Patrimônio Cultural da Humanidade, dado pela UNESCO.
Um título que, como é sabido,incrementa a indústria turística local, e, provoca aumento do número de seus empregos e de sua arrecadação de impostos, em benefício das áreas sociais do município, como as da saúde e da educação.
- Oswaldo Coimbra é escritor e jornalista
Translation (tradução)
The Lesson Belém Learns from São Luís, Its Sister City
About two decades ago, two architects sparked a healthy rivalry in preserving Belém’s architectural heritage. One, Paulo Chaves, was the state secretary of culture at the time. The other, Edmilson Rodrigues, was the mayor of the capital. During that period, some of Belém’s most valuable architectural treasures, inherited from its centuries-old past, were restored in this virtuous competition between the two public administrators.
These treasures were built during the era when Belém, in the 17th and 18th centuries, shared with São Luís the honor of serving as the seat of the vast Grão-Pará/Maranhão State, which was then independent from Brazil within the Portuguese kingdom. They also date from the Amazonian Belle Époque, in the late 18th and early 19th centuries, when the region prospered from the wealth generated by rubber exports.
The beauty of Belém’s heritage could be admired by an imaginary wanderer on a route starting at Largo do Carmo and leading toward Forte do Presépio. At the square, the wanderer would marvel at the restored charm of the chapel within the Carmelite architectural complex, the Igreja do Carmo. Next, they would stroll down the city’s first street—the former Rua do Norte, now Siqueira Mendes—and arrive at its earliest structure, the restored Forte do Castelo. There, well-executed archaeological excavations uncovered thousands of buried ancient artifacts, enabling the creation of a new museum on-site.
Continuing down Rua Padre Champagnat toward Largo do Palácio, the wanderer would encounter other restored works built by religious orders, such as the Igreja de Santo Alexandre, adjacent to the former Jesuit convent, later used as the Archbishop’s Palace and now the Museum of Sacred Art. They would also spot the Military Hospital, designed by Antonio Giuseppe Landi, revitalized as the Casa das Onze Janelas. Across Largo do Palácio, another Landi masterpiece, the Governors’ Palace—later named Palácio Lauro Sodré—would come into view, alongside the Palacete Azul, the residence of Antônio Lemos, the mayor during the opulent Belle Époque.
Paulo Chaves and Edmilson were ideological adversaries, shaped by different influences during their time at the Faculty of Architecture at UFPA and affiliated with rival political parties. Yet, despite their political ambitions and partisan constraints, each strove to outshine the other by restoring as many historical structures as resources allowed.
It was during this unique moment in Belém’s Historic Center that public officials considered an additional measure: restoring Rua do Norte’s original appearance by burying the electrical and telephone wires that visually pollute the facades of its houses. The proposal seemed entirely feasible, as Belém had already benefited from complex and costly revitalization projects, such as the restoration of the Ver-o-Peso Market, the transformation of old dockside warehouses into the Estação das Docas, and the refurbishment of shop facades on Rua João Alfredo, giving the Belle Époque’s premier commercial street a cinematic, period-film aesthetic. The street even saw the return of its historic tram.
This revitalization allowed our imaginary wanderer to enjoy an extended tram ride through the surroundings of the Santo Alexandre architectural complex. Tragically, however, the golden era of Belém’s Historic Center ended when the task of preserving its rich architectural heritage was entrusted to lackluster state and municipal culture secretaries, products of the bureaucratic machinery of political parties that won subsequent local elections.
Essential preservation measures became dependent on politicians like Duciomar Costa, whose prolonged tenure as mayor is etched in the memory of Belém’s residents for the repugnant and shameless display of human feces on ancient monuments—on the Memorial at Praça da República, the bandstand in that beautiful square, the facade of the Franciscan convent, and, unbelievably, even in front of the Palacete Azul, where his office was located.
Thus, the dream of burying the wires in Siqueira Mendes and other streets of Belém’s Historic Center became unattainable for the city’s residents. Fortunately, the same prohibition did not befall the residents of São Luís, the other capital of the former Grão-Pará/Maranhão State, where all streets in the historic center have underground wiring.
This example of care enabled São Luís to earn the prestigious title of UNESCO World Cultural Heritage City—a designation known to boost local tourism, increase employment, and generate tax revenue, benefiting social sectors like health and education.
- Oswaldo Coimbra is a writer and journalist.
(Illustration: Underground wiring in a street of São Luís’s Historic Center)
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