Geração perdida, a tragédia nacional: em 10 anos, guerra urbana mata 312 mil jovens

  • Carlos Mendes – editor do Ver-o-Fato

O Brasil está matando suas gerações. Não é uma metáfora, mas uma realidade crua, banhada em sangue, que se desenrola nas ruas, vielas e periferias do país. O Atlas da Violência 2025, divulgado nesta segunda-feira (12) pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), escancara uma tragédia nacional: entre 2013 e 2023, 312.713 jovens, majoritariamente homens (94%), foram assassinados, com destaque para a faixa dos 20 anos.

Em apenas uma década, o Brasil perdeu mais vidas para a violência do que conflitos armados históricos como as guerras do Vietnã, Afeganistão, Iraque e Síria. É uma vergonha nacional, uma guerra civil não declarada que consome o futuro do país enquanto governos federal e estaduais assistem, impotentes, ao fracasso retumbante de suas políticas de segurança e ao abandono social de milhões.

A violência é a principal causa de morte entre jovens brasileiros de 15 a 29 anos. Em 2023, 47,8% dos 45.747 homicídios registrados no país vitimaram pessoas nessa faixa etária, uma média de 60 jovens mortos por dia. Apesar de uma redução na taxa de homicídios juvenis desde o pico de 2017 (72,4 por 100 mil jovens) para 47,0 por 100 mil em 2023, o número absoluto permanece alarmante.

Como destaca o Atlas da Violência 2025, “o homicídio de um jovem não é apenas uma tragédia individual ou familiar, mas um impacto direto no futuro do país”. Cada morte representa a interrupção de sonhos, carreiras e famílias que nunca serão formadas.

Para os pesquisadores, a morte prematura impede o jovem de alcançar fases cruciais da vida, como a formação profissional, o ingresso no mercado de trabalho e a construção de uma família.

Os dados revelam uma desigualdade geográfica gritante. Amapá (134,5 por 100 mil jovens) e Bahia (113,7 por 100 mil) lideram as taxas de homicídios juvenis, com números até 12 vezes superiores aos de São Paulo (10,2 por 100 mil), que ostenta a menor taxa do país. Enquanto estados como São Paulo, Santa Catarina e Minas Gerais mostram avanços na redução da violência, outros, como Amapá (+49,1%) e Mato Grosso do Sul (+17,1%), registram aumentos alarmantes, na contramão da tendência nacional.

Armas de fogo: o gatilho da devastação

O relatório aponta um vilão conhecido: as armas de fogo. Em 2023, 71,6% dos homicídios no Brasil foram cometidos com esse tipo de armamento, totalizando 32.749 mortes. Entre jovens de 15 a 19 anos, 83,9% dos assassinatos envolveram armas de fogo. Nos últimos 11 anos, 12 milhões de anos potenciais de vida foram perdidos devido a homicídios por armas de fogo, superando as perdas por acidentes e suicídios combinados.

O Atlas é categórico: “Quanto maior a circulação e a prevalência de armas de fogo, maior tende a ser a taxa de homicídios”.

A flexibilização do acesso a armas durante o governo Bolsonaro (2019-2022) é apontada como um fator agravante, mas isso do relatório do Atlas é contestado por alguns especialistas, que apontam a redução geral de homicídios desde 2017. Eles dizem ainda que o problema não são somente as armas legais registradas durante a compra, mas o aumento da circulação de armas ilegais, que alimentam conflitos em regiões já marcadas pelo tráfico de drogas e pela atuação de facções criminosas. O pesquisador Daniel Cerqueira, do Ipea, alerta que a fragilidade na fiscalização de armas criou um cenário propício para a escalada da violência letal.

Facções, confrontos, policiais mortos: a guerra nas periferias

As periferias brasileiras são palco de verdadeiras guerras civis. O Atlas da Violência 2025 destaca que a trégua entre as duas maiores facções criminosas do país, o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), contribuiu para a redução de homicídios desde 2018. No entanto, o surgimento de cerca de 80 novas facções regionais reacendeu disputas territoriais, pressionando os índices de violência em estados como Amapá, Bahia e Pernambuco.

“Se antes eram duas grandes facções, agora são dezenas”, explica Cerqueira.

O tráfico de drogas, aliado à ausência do Estado, transforma comunidades em zonas de conflito. Jovens, muitas vezes sem acesso a educação ou oportunidades, são cooptados pelo crime organizado, que oferece uma ilusão de poder e pertencimento. Enquanto isso, confrontos entre facções e operações policiais agravam o cenário.

Em 2023, a Bahia liderou o número absoluto de mortes por intervenção policial (1.701), seguida por estados como Amapá, que registrou a maior taxa proporcional (25,3 por 100 mil habitantes). Cerca de 80% das vítimas dessas ações eram negras, e 70% tinham entre 12 e 29 anos.

Por outro lado, quem combate as organizações criminosas também morre durante as intervenções. O número de policiais civis e militares “caçados” e executados por facções é assustador. Entidades desses policiais denunciam e protestam, mas suas queixas caem no vazio. A matança continua.

O fracasso dos governos e o desamparo social

O Atlas da Violência 2025 reconhece avanços pontuais, como a redução de 20,3% nos homicídios desde 2013 e a melhoria na qualidade dos dados em estados como Espírito Santo, que reduziu os “homicídios ocultos” de 205 em 2022 para apenas sete em 2023. No entanto, o quadro geral é de fracasso. Políticas de segurança pública baseadas em repressão, como o policiamento ostensivo, mostraram-se ineficazes.

“Precisamos de uma polícia inteligente, não da brutalidade”, defende Cerqueira, destacando a necessidade de planejamento, inteligência e prevenção social.

O desamparo social é um dos pilares dessa tragédia. A ausência de políticas públicas robustas em educação, saúde mental e empregabilidade deixa milhões de jovens à mercê do crime. O relatório aponta que, entre 2013 e 2023, 2.124 crianças de 0 a 4 anos e 90.399 adolescentes de 15 a 19 anos foram assassinados, muitos em contextos de violência doméstica ou negligência. A violência não letal também cresceu: em 2023, o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) registrou 115.384 atendimentos a crianças e adolescentes vítimas de agressões.

O Governo Federal, por meio de iniciativas como o projeto Vidas Protegidas, anunciou investimentos de US$ 291 mil para prevenção da violência infantojuvenil. No entanto, o montante é irrisório frente à magnitude do problema. Estados como São Paulo e Minas Gerais, que implementaram políticas multissetoriais de prevenção, colhem resultados positivos, mas a falta de coordenação nacional e de recursos impede a replicação dessas práticas.

Uma vergonha nacional: mais mortes que em guerras globais

A comparação é inevitável e chocante. Entre 2013 e 2023, o Brasil registrou mais de 500 mil homicídios totais, superando as mortes em conflitos como a Guerra do Vietnã (cerca de 58.000 soldados americanos e 1,1 milhão de vietnamitas), o Afeganistão (cerca de 170.000 mortos no total) e a Guerra Civil Síria (cerca de 500.000 mortos). Enquanto o mundo lamenta essas tragédias, o Brasil normaliza suas próprias guerras urbanas, onde jovens negros, pobres e periféricos são as principais vítimas.

A taxa de homicídios entre pessoas negras (2,7 vezes maior que entre não negras) e indígenas (22,8 por 100 mil habitantes em 2023) evidencia o racismo estrutural que permeia a violência no país. “É como se o Brasil tivesse zonas de guerra declaradas, mas sem o reconhecimento oficial”, afirma a socióloga Maria Helena Pereira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em entrevista à Folha de S.Paulo (13/05).

Um chamado à ação

O Atlas da Violência 2025 é mais do que um relatório: é um grito de socorro. A redução de 30% nos homicídios desde o pico de 2017 é um alento, mas insuficiente. O Brasil precisa de uma revolução nas políticas de segurança e inclusão social. É urgente investir em educação, saúde mental e oportunidades para os jovens, além de fortalecer o controle de armas e desmantelar as redes do tráfico.

A inteligência policial deve substituir a repressão cega, e o Estado deve reassumir seu papel de protetor, não de ausente.

Enquanto as ruas continuarem sendo campos de batalha, o Brasil seguirá enterrando suas gerações. A pergunta que ecoa é: até quando o país tolerará essa carnificina? A resposta depende de todos nós — governos, sociedade civil e cidadãos.

É hora de transformar a vergonha nacional em ação.

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