
Marline Melo relata como acreditou na promessa de uma cirurgia para o filho com paralisia cerebral e seguiu orientações perigosas passadas pela suspeita. Falsa médica enganava famílias e chegou a suspender tratamentos legítimos em Manaus
A esperança de ver o filho andar levou a dona de casa Marline Melo a confiar em Sophia Livas de Morais Almeida, de 32 anos, presa por se passar por médica e atender ilegalmente crianças com doenças graves no Amazonas.
De acordo com a dona de casa, Sophia prometeu uma cirurgia que transformaria a vida de Otávio, de 11 anos, que tem paralisia cerebral. A falsa médica receitou medicamentos, suspendeu tratamentos e mostrou vídeos com supostos resultados de procedimentos semelhantes. Tudo, porém, era mentira.
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A falsa médica foi presa nesta segunda-feira (20) enquanto se exercitava em uma academia de alto padrão na Zona Centro-Sul de Manaus. A abordagem foi feita pela equipe da Polícia Civil que já investigava diversas denúncias contra ela.
Até a última atualização desta reportagem, o g1 não conseguiu contato com a defesa de Sophia. A Justiça do Amazonas manteve a prisão preventiva da investigada.
“Ela me deu essa esperança. Falou que o caminho seria árduo, mas que o Otávio voltaria a andar. Seria um bem prolongado, mas voltaria”, contou Marline, emocionada.
A mãe manteve contato com Sophia por meses, após conhecê-la em um serviço social realizado na Câmara Municipal de Manaus, onde a falsa médica se apresentou como pediatra, demonstrou envolvimento emocional com a história do menino e chegou a encaminhá-lo para uma suposta cirurgia, prometendo que ele voltaria a andar. A dona de casa acreditava que o procedimento era real.
“Ela chorou até comigo. Eu chorei com ela”, lembra a mãe.
A confiança foi tanta que Marline seguiu todas as orientações da falsa profissional, inclusive a suspensão de inalações e o uso de medicamentos alternativos. Sophia também pediu fotos e vídeos do menino com a justificativa de produzir um material para captar ajuda financeira.
“Ela me mostrou um vídeo no celular dela de um médico após a cirurgia em uma criança, mostrando como a criança melhorou. Disse que muitos amigos dela queriam ajudar e que a cirurgia sairia mais rápido do que a gente previa. Já tinha até data marcada: seria no dia seguinte”.
A situação começou a mudar quando o estado de saúde de Otávio piorou. Ele passou a ter crises epilépticas e vômitos. Ao ser questionada, a falsa médica disse que o menino provavelmente estava com rotavírus.
“Achei estranho. A resposta dela não fazia sentido”, contou.
O ponto de ruptura foi quando Marline pediu uma receita médica controlada. Sophia recusou, dizendo que não tinha CRM.
“Ela se apresentou pra mim como pediatra. Qualquer pediatra pode renovar uma receita. Aí eu já fiquei assim”, conta a mãe, desconfiada.
Mesmo diante da desconfiança, Sophia continuou prometendo atendimento e manteve viva a esperança da cirurgia. A confirmação da farsa veio com a notícia da prisão.
“Quando eu vi na TV, eu falei: ‘doutora Sophia!’ No primeiro momento, eu não acreditei. O jeito que ela falava, como abordava os assuntos… Eu acreditei. Falei pra ela: ‘doutora, há 11 anos, nenhum médico me deu a esperança que a senhora me deu'”.
Agora, a família busca Justiça.
“Se acontece alguma coisa com o Otávio, eu ia me culpar pro resto da vida. Eu pretendo colaborar, mostrar tudo — mensagens, vídeos — pra que isso não aconteça com mais ninguém”.
Segundo o delegado Cícero Túlio, outras mães também prestaram depoimento. A polícia segue investigando para identificar todas as vítimas.
“Tem uma série de crimes aí, um encadeado no outro. Ela interrompia tratamentos e colocava a saúde de crianças em risco. Nos hospitais, chegou a apresentar documentos falsos. Estamos apurando que tipo de documentos eram esses”, disse o delegado.
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Sophia Livas, falsa médica presa em Manaus
Divulgação
Formada em Educação Física, mas dizia ser médica especializada em crianças e gestantes.
Se infiltrou em grupos de profissionais da saúde e foi aceita em programas de atendimento a crianças com doenças graves.
Usava jaleco branco, carimbos de médicas reais e receitava medicamentos — inclusive controlados — para crianças autistas.
Dava aulas em faculdades como “professora convidada” e era representante de um congresso de neurocirurgia marcado para julho, em Manaus.
Publicava fotos em plantões, com pacientes em tratamento contra o câncer e se promovia como uma médica humanizada.
Chegou a alegar ser parente do prefeito de Manaus, David Almeida, para ganhar prestígio — informação que foi desmentida pelo próprio gestor em nota enviada pela prefeitura.
Segundo a Polícia Civil, ela chegou a registrar um boletim de ocorrência contra pacientes que a denunciaram, tentando inverter a história.
Na casa dela, foram apreendidos medicamentos, receituários, jalecos de hospitais públicos e documentos falsificados. A Justiça decretou a prisão preventiva.
Sophia é investigada por exercício ilegal da medicina, falsidade ideológica e outros crimes. Duas crianças autistas e trabalhadores que apresentaram atestados falsos estão entre as vítimas.
Como ela se infiltrou na área da saúde?
Polícia Civil do Amazonas prende falsa médica
Durante as investigações, foi descoberto que ela obteve, dentro do Hospital Universitário Getúlio Vargas (HUGV), o carimbo de uma médica verdadeira que compartilhava o mesmo primeiro nome. Com esse carimbo, Sophia passou a realizar consultas de forma independente.
“Ela acabou se infiltrando em uma comunidade de médicos que faziam parte de um grupo de pós-graduação. Ganhou a confiança desses profissionais, fazendo com que acreditassem que ela era médica. A partir de então, foi convidada a integrar um programa de assistência e acompanhamento de crianças com cardiopatia grave”, afirmou o delegado Cícero Túlio.
Em nota, o Hospital Universitário Getúlio Vargas informou que Sophia Livas nunca atuou como médica na unidade e não há registros de atendimentos feitos por ela. Segundo o hospital, ela foi aluna de mestrado na Universidade Federal do Amazonas como educadora física e, após concluir o curso, não mantém qualquer vínculo com a instituição.
O HUGV afirmou ainda que está à disposição da polícia para colaborar com as investigações.
Na delegacia, Sophia negou ser médica. Porém, nas redes sociais, ela se apresentava como tal e dizia ser sobrinha do prefeito de Manaus, David Almeida — informação falsa desmentida oficialmente pela prefeitura.
A Secretaria de Comunicação de Manaus esclareceu que o prefeito não tem qualquer parentesco com Sophia.
Além disso, a foto que a falsa médica publicou mostrando o prefeito com uma criança afirmando ser ela é, na verdade, do prefeito com sua filha, Fernanda Aryel. Outra imagem ao lado do prefeito foi uma selfie tirada em local público, comum quando ele é abordado por populares para fotos.
Em uma publicação em destaque no Instagram, Sophia aparece atendendo um paciente e celebra um “importante avanço na ciência”.
Na legenda, afirma: “Hoje iniciamos as coletas do projeto Renomica Brasil, que investiga, por meios genéticos, doenças cardiovasculares hereditárias ou não”.
Currículo apresentado pela falsa médica
No currículo publicado na plataforma Lattes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que reúne informações acadêmicas e profissionais de pesquisadores brasileiros, Sophia afirma:
Ser especialista em Saúde Coletiva pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz);
Ter concluído curso de extensão em doenças tropicais pela Fiocruz
Ter concluído curso de extensão em saúde pública pela Universidade de São Paulo (USP)
Ter concluído curso de extensão em saúde pública pela Unidade de Saúde Pública Arnaldo Sampaio (UPAS), em Portugal.
Ela também se apresenta como pesquisadora da Ufam e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Além disso, Sophia destaca o trabalho como professora voluntária na graduação da Ufam e na pós-graduação da Escola Superior Batista do Amazonas (Esbam).
Porém, a investigação da polícia revelou que ela possui apenas bacharelado em Educação Física pela Ufam, concluído em março de 2022, mestrado em Ciências da Saúde pela mesma instituição, e que as demais informações em seu currículo Lattes são falsas.
Em nota, a USP confirmou que Sophia nunca foi matriculada na instituição e que o curso de extensão que ela alegava ter feito em 2020 foi cancelado.
Em nota, a ESBAM informou que Sophia Livas atuou apenas como professora convidada, ministrando dois módulos isolados em cursos de pós-graduação, com base em sua formação em Educação Física, Especialização em Saúde Coletiva e Mestrado em Ciências da Saúde. A documentação apresentada foi analisada e aprovada pela coordenação, sem indícios de irregularidades.
A instituição esclareceu que não houve vínculo empregatício nem integração ao corpo docente permanente, e que os conteúdos ministrados não estavam relacionados à área médica.
O g1 entrou em contato com as demais instituições citadas, mas não houve resposta até a última atualização desta reportagem.
Como a farsa foi descoberta?
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Em Manaus, este é o segundo caso recente envolvendo pessoas que atuaram ilegalmente como médicos. No final de abril, Gabriel Ketzel da Silva, de 28 anos, foi preso por se passar por médico, após atuar por cerca de dois anos, principalmente atendendo crianças.
As investigações contra Sophia Livas começaram há aproximadamente um mês, como um desdobramento da operação que resultou na prisão de Gabriel.
Durante o processo, foram recebidas denúncias contra Sophia, que prestava atendimento a crianças com cardiopatias graves. Essas denúncias levaram à operação que culminou na prisão dela.
Pelo menos duas crianças autistas estão entre as vítimas. Segundo a polícia, os pais relataram que receberam receitas com medicamentos controlados emitidas por Sophia. Outros dois pacientes foram demitidos do trabalho após apresentarem atestados falsos emitidos por ela.
Ao ser presa, Sophia levou os policiais até a casa onde mora. No local, foram apreendidos jalecos, remédios, receituários do SUS e documentos médicos com nomes de profissionais reais.
“Diversos documentos, inclusive preenchidos com nomes de médicos que já tinham relatado à polícia que estavam sendo lesados, também foram encontrados na residência”, disse o delegado Cícero Túlio, que coordenou a operação.
O Conselho Regional de Medicina do Amazonas (Cremam) informou que, até o momento, não recebeu denúncia formal sobre a atuação de Sophia como falsa médica.
O órgão afirmou que, sempre que recebe indícios de exercício ilegal da medicina, repassa as informações às autoridades competentes. O Cremam também orienta que a população pode consultar a regularidade de médicos no site do Conselho Federal de Medicina.
A Justiça decretou a prisão preventiva de Sophia. Segundo a Polícia Civil, ela deve ser indiciada pelos seguintes crimes:
Falsa identidade
Falsidade ideológica
Exercício ilegal da medicina
Estelionato contra vulnerável
Falsidade material de atestado
Curandeirismo
Charlatanismo
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